Nada foi tão bem planificado neste mundo como a morte das cidades

Mais um comércio centenário encerrado na Baixa de Coimbra. Adivinha-se para o seu lugar uma loja de artigos turísticos. Vinhos do Porto? Latas de conserva? Gelados artesanais?

Os que hoje choram o encerramento de mais uma antiga loja (ou “loja histórica”, como lhe chamam) no centro de uma cidade esquecem-se geralmente que esse desaparecimento não é fruto de um qualquer acaso, mas que foi cuidadosamente premeditado e calculado por urbanistas, industriais, empresas de distribuição, lobistas, ministérios vários (obras públicas, planeamento, ordenamento do território, etc.) e vereadores de urbanismo democraticamente eleitos. Cada pequena loja que fecha as portas numa daquelas ruas, que em criança nos fizeram admirar como uma das mais importantes do centro da cidade, obedece a um plano que visa transformar radicalmente a organização do território urbano e também da economia, com vastos impactos sociais, culturais e ecológicos. Nesse planeamento do território, que, apesar de ser uma forma de configurar a sociedade, é sempre apresentado como uma questão meramente técnica e não política, não há lugar para pequenos comércios familiares, independentes de grandes cadeias ou de corporações multinacionais, os quais se vão por isso tornando raridades cada vez mais anacrónicas.

Ministro do Planeamento e das Infraestruturas de Portugal

Ainda que os políticos jamais o admitam (porque seria no fundo reconhecer a finalidade histórica das suas políticas), a concentração oligopolista do mercado único, que as suas democráticas leis favorecem, é a característica central da economia neoliberal. As poucas empresas que sobrevivem a essa concentração, e que assim se tornam gigantes corporações, para lá de dominarem toda a economia, dominam também a organização do território urbano, impondo-lhe, com o amparo de infraestruturas públicas, os novos pólos geográficos. A criação de zonas comerciais através de shoppings, hipermercados e grandes armazéns de distribuição, na periferia das cidades, enquanto cria novas centralidades desconectadas da ‘velha’ cidade, corrói as antigas centralidades que se tornam autênticos desertos humanos. A cidade torna-se obsoleta à medida que a vida se transfere para as redes viárias que desaguam nos novos centros periféricos.

O automóvel, e não o corpo humano, converte-se no actor central desta urbanidade surgida nos E.U.A. há bem mais de meio século, imposta em todos os países “ricos” a partir pelo menos dos anos setenta e patente agora até na mais pacata cidade de província ocidental. Em Vila Real, Tavira ou Cantanhede a figura do transeunte, que calcorreia a cidade nos seus trajectos quotidianos, foi já substituída por aquela do condutor, com a qual todos os jovens começam a sonhar mal se aproximam dos 18 anos. Poucas coisas são hoje mais desprestigiantes do que andar a pé, mesmo numa cidade de dez ou quinze mil habitantes. Duas consequências decorrem deste facto. Por um lado, os habitantes da nova urbe vêem-se privados de um relacionamento diário com a cultura material que caracteriza e define historicamente as cidades: velhas arquitecturas, jardins, praças, esplanadas e cafés com vida colectiva, lugares de memória, museus, associações, bibliotecas, teatros. Por outro, a função pré-capitalista de espaço de socialização informal que, através de cafés, mercearias, tabernas ou mercados, o pequeno comércio urbano desempenhava, desapareceu quase por completo. Nos não-lugares do comércio global, acessíveis apenas ao automóvel (McDonald’s, Continente, Ikea), não estão previstos o convívio e a partilha. O único relacionamento autorizado é aquele que, sem criar elos nem ligações, o consumidor isolado e anónimo de mercadorias experimenta enquanto é mecanicamente atendido por um empregado precário que se sabe na iminência de ver-se substituído por um robô.

Quanto ao pequeno comércio situado nas antigas ruas das cidades moribundas e desertas, o principal destinatário é agora o novíssimo transeunte das mesmas, aquele que por toda a parte se elogia porque “lhes veio devolver a vida”: o turista. Como bom romântico que é, todo o turista deseja ver e viver, não nos novos centros da urbe (onde se distribuem as mercadorias produzidas industrialmente), mas na velha cidade pitoresca, entretanto desaparecida, que fora criada antes da industrialização, quando ainda não se desenhavam urbes com o fim exclusivo de fazer vender mercadorias em massa. Aluga, por isso, um apartamento num antigo edifício recuperado numa ruela estreita, compra uns sabonetes artesanais com design retro numa nova “mercearia típica” e prova da doçaria “regional”. A cidade que fotografa está morta. Évora está morta, Lisboa está morta, Coimbra está morta, o Porto está morto. Mas a sua materialidade continua lá. Cuidadosamente recuperada e requalificada, ela dá lugar a parques temáticos (pseudocidades sem habitantes, sem comunidades) onde se mercantilizam os referentes (arquitectónicos, patrimoniais, gastronómicos, etc.) de uma suposta identidade local. Enquanto complexo de funções sócio-culturais que historicamente a definira, a cidade já não existe. Os poderes políticos e económicos das democracias liberais esvaziaram-na primeiro da maior parte dessas funções, depois refuncionalizaram-na enquanto mercadoria turística. Sabe-se portanto o que é possível esperar dos pequenos comércios da Baixa de Coimbra e de todas as outras Baixas do país.

About PDuarte

Historiador, jardineiro, horticultor. Vive na província. No tempo vago, que procura multiplicar de dia para dia, perde-se em viagens, algumas pelos montes em redor, outras pelos livros que sempre o acompanham. Prefere o vinho à blogosfera, a blogosfera ao Parlamento.

5 opiniões sobre “Nada foi tão bem planificado neste mundo como a morte das cidades

  1. Excelente este texto do Pedro pela clarividência, pela denúncia e pelo desmonte que consegue fazer da conspiração (não teoria…) anti-cidadania, anti-humanização. Os meus parabéns. Desta vez, as minhas expectativas foram largamente superadas. Ainda bem.
    Não esbanjámos……Não pagamos!!!!!!

  2. De facto, uma sociedade de consumo é, e apenas pode ser, uma sociedade de solitários. A obsolescência planeada das “comunidades” é obviamente a sua condição “sine qua non”.

    Transformam-se cidades, outrora cheias de vitalidade, em atracções efémeras para os “instagrams” dos turistas, enquanto os locais se alienam da sua própria história/cultura (e portanto, inevitavelmente, se alienam uns dos outros), e se mudam para caixotes de apartamentos sem identidade, junto de um qualquer “mall”.

  3. Nas cidades? Até nas pequenas aldeias isso já é gritante. Voltando à aldeia (agora vila) onde cresci, depois de criadas as “acessibilidades” e feitas as rotundas, lá apareceu o Lidl. Entretanto, as mercearias fecharam todas e as pessoas vão ao Lidl de carro. Numa aldeia plana já é comum ver pessoas a ir à loja de carro…

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