
Brumário
Sabíamos da existência do destino e de um conjunto de coisas que se moviam no espectro da sombra e que tolhiam as pessoas. Coisas que tomavam os muitos nomes que se lhe haveria de dar conforme a circunstância e a oportunidade semeada pelo destempero da vida. O negrume dos tempos, o inexplicável e o misterioso descrito com afinco em colecções de livros que iam do triângulo das Bermudas aos extra-terrestres. Eram, entre outros, os problemas do dia, de ordem quase metafísica com que se lidava com extrema precaução. Sabíamos disso, que vida se finava num abrir e fechar de olhos. Tínhamos visto ali nos quintais alguidares de tragédias domésticas, verdadeiras óperas encenadas por um Deus cruel a que se acendiam velas. E não havia cá razão que nos valesse que se impusesse contra a vontade do destino. Os desmandos do cornudo e da vida prática, pelo que se ouvia falar na televisão, faziam mossa da grossa na alma das pessoas. Os primeiros a tombar eram os comuns, depois os outros, com mais dinheiro para consultas no estrangeiro ou especialistas em trabalhos de mau-olhado. O destino é aquilo que acontece e é sem remédio, é o que é. A novidade fundava-se nas contrapartidas sociais anunciadas na revolução uns anos antes, e, o destino, de outra fibra, temia-se. Apareceu uma Santa qualquer em Santa-Cona-do-Assobio. E ríamos, sentados nos muros dos jardins agarrados às barrigas de tanto rir. Frases de cortar o silêncio para vencer o azar. Os muros dos jardins que ficavam em frente aos prédios, eram uma espécie de nártex florido à entrada da casa materna. Ria-se para afastar o mal que o destino podia trazer.
Por vezes, sem mais nada para fazer, debaixo de um sol tórrido, observávamos o tempo chegar. A hora de ir comprar um gelado ao Mini-Mercado que ficava do outro lado da rua. Um pequeno entreposto comercial que era palco de grandes ambições. Um projecto familiar trazido de uma aldeia qualquer, que tinha tido origem num tempo não muito distante. Ali viva o homem concreto no seu verdadeiro habitat. As tarefas diárias limitadas ao tempo, ao horário do expediente e ao plástico colorido gerido por um afável capitalista de bairro cujo propósito era o do enriquecimento rápido, a aspirar a todos os prazeres que o dinheiro podia trazer. Os raciocínios de vinha-d’alhos com origem numa estranha fé não apresentavam o menor desvio ao conservadorismo familiar. Ali não houve revolução nenhuma. Todo o animal procura o seu sentido de viver, é verdade. De que valem as grandes filosofias da existência se o conforto do plástico é superior à alienação que o trabalho fomenta. A máquina libertou o homem da escravatura da labuta, mas atirou com ele para um mundo de fumo onde apenas se vislumbram sombras e silhuetas que mal adivinhávamos a quem pertenciam. A mercadoria confunde-se com o trabalhador e tudo tem um preço. Sem exploração não há lucro. E o lucro, que vem a ser? Palavras supostamente sábias ditas vezes sem conta pelo pai do Quirino em palestras gratuitas à porta do Mini-Mercado. O pessoal mais novo à volta dele a chupar Olás e a ouvi-lo. A hora do Olá tinha disto e pastilha elástica azul, ou cor-de-rosa, no fundo do copo do gelado. A produção depende da substancialidade do consumo e vice-versa, coisas básicas, trocados. E continuava, comendo pevides, a falar e a cuspir para o chão as cascas das pevides. No consumir é que está o ganho. Se o trabalhador não produz, não ganha o dele. E o que toda a gente quer é ganhar o seu. É ou não é? Ser ou não ser daquele planeta, daquela mundanidade onde não existiam nem os grandes feitos da história, nem da literatura, nem da ciência, nem de coisa nenhuma que o valha, a que apenas se aplicava uma espécie de puta-que-o-pariu, vamos mas é jogar à bola. O Quirino auxiliava o pai nestes discorres. Orgulhoso, abanava a cabeça em sinal afirmativo. Agarrado à vassoura, varria as cascas das pevides semeadas pelo pai à volta do pai. Eles, pai e filho, intuíam que, nesta cadeia de consumo, a produção e o ganho eram tudo. E mais pevides. A boca tinha sempre casca de pevides coladas aos lábios. Explicava a sua perspectiva enquanto a força do trabalho e a consciência colectiva definhavam nos alguidares de plástico. Promoviam sem noção do histórico conceito de alienação, estabelecendo uma relação directa entre o objecto, o sujeito e as condições concretas em que se processava a produção e o trabalho. A actividade produtiva de que falavam era no fundo a fonte da consciência dos trabalhadores que passava na televisão. As gritarias que aquela gente que mal sabia falar fazia na televisão. As gritarias eram medonhas, obra do destiino, certamente. A minha mãe desfazia-se em considerações, Coitados, sem nada para comer quem é que não há-de ter razão para falar assim? O reflexo da sua actividade, o tempo e a minha história, aquela que me contavam, confirmava que o homem tinha evoluído de acordo com o trabalho e não o contrário. A história deles era outra. Era relatada no horizonte do Mini-Mercado que seguramente estava na vanguarda do grande capital moderno. Os ricos e os poderosos, patamar onde se situavam o Quirino e o seu pai, à escala da rua, ditavam, também ali, algumas regras. Os produtos fora do prazo eram anunciados com letras pintadas à mão. A curiosidade aguçava a procura e os Quirinos sabiam disso. É nesta relação social que crescia à tripa-forra o capital que haveria de transformar os Quirinos em micro-Quirinos. A semente voraz da nova economia fora lançada ao mundo por espécimes que certamente comiam pevides. A perspectiva bolsista de mercado estava para rebentar. A simplicidade, minha senhora? Temos a simplicidade de uns selvagens, dizia o pai do Quirino à mãe da Blimba. As palavras provinham-lhe da braguilha das calças sempre que falava com a mãe da Blimba. O gajo anda sempre cheio de tesão, dizia-se entre os putos. O reino do alguidar era ali, e a cores. Polímeros transformados em almofias vistosas. O micro-Quirino é um fragmento do original, uma evolução histórica a partir de uma matriz social degenerada. O seu aparecimento foi responsável pela poluição dos oceanos, transformados, entretanto, em sopa de plásticos. A popularização do Mini-Mercado e do saco com asas são os grandes responsáveis pela poluição dos mares. Os Micro-Quirinos chegavam ao mar levados pelas fortes correntes dos rios, soprados pela ventania que vinha do interior da terra. Um Quirino pensa como um saco de plástico e pega de estaca, videirinho. Estás aqui, estás a enfardar. O gajo armava-se ao pé dos putos. Cabeça de plástico é aquele que projecta a eternidade num curto espaço de tempo. O que é preciso é ser rico, está ouvir? Olha que levas uma sarrafada, caralho. Está a olhar para onde? Os putos todos a rir. Um deles diz, Eh boi, eh lá, “ganda“ boi! O pai do Quirino diferenciava-se do filho pela cor do guarda-pó, como se na loja cada cor correspondesse a uma hierarquia na cadeia de comando. O ocre do pai era a cor da chefia. O azul índigo do filho, o da vulgaridade que se prestava a todo o trabalho sujo do Mini-Mercado. A mãe, multicolorida, era baixa e tinha um bigode de meter medo. Aquilo tinha uma ordenação rigorosa, indigentemente imposta de cima para baixo. O pai comia atrás do balcão e tomava conta da loja no período do almoço. O filho comia com a mãe no 1.º andar do prédio de dois andares, mesmo por cima do Mini-Mercado. O pai comia sentado no banco alto do balcão com o prato pousado nos joelhos. Cheirava a banha que ficava guardada numa vitrine depois da secção e perfumes. Faziam férias na primeira quinzena de Agosto, no Almograve. Tinham lá uma casinha de madeira com um quintal à frente e, depois da praia, por causa das tosses do Quirino, iam para a aldeia dos pais dele que fica numa serra qualquer. Regressavam em Setembro para capitalizar a comuna que entretanto se deturpara em nome da unidade, da fraternidade e dos vários socialismo que se apregoavam na rua. Eu tenho um tio que tem um relógio em ouro maciço. Trabalha na Suíça, é encarregado numa fábrica de plásticos. O Quirino tinha um tio. Foda-se pá, o Quirino até tem um tio na Suíça.Toda a gente tem um tio, ou dois. Por vezes ficávamos a ouvi-lo falar aquelas coisas todas. Era um estupor, o Quirino. Só se armava em frente aos putos. Sem a mais significativa manifestação de génio, de singularidade, de jeito. Lérias, era o que aquilo era. E coisas destas aparecem vindas de todo o lado. Tenho um fartote de tipos cheios de si e empáfia. Surgiam no ar, eram pólenes da tosse, multiplicavam-se sem a mínima graça. Mas o pior, na geografia humana, é o interior e as suas aldeias, à imagem do litoral e das suas capitais. É desses sítios que afluem às capitais do litoral os micro-Quirinos: as capelas onde nasciam eram geridas por copistas de sacristia e uma espécie de padralhada que se sabia semear filhos entre as filhas dos outros. Com frequência esta gente ejaculava sem frémito pontos finais e vírgulas. Babam-se doutores que vivem à sombra da ausência de memória, e outros improfícuos que sabíamos existir. Há sempre gente inútil na sombra. A sombra era um perigo, mesmo sob a protecção de colares de alhos e cebolas. Os mandados das mães eram recados bíblicos. Coisas domésticas para fazer sopas transcendentes. Divino? Divinas eram as sopas.
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