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Sou pessoa alta, magra por criação, amante de velocípedes e de quase tudo que implique não fazer à segunda - quero dizer, sou do tipo espontâneo. Licenciado em altos estudos artísticos na ESBAP, tenho, desde lá, desenvolvido uma certa tendência para o comércio a retalho e agricultura de terraço. Possuo momentos de grande felicidade e civilidade que nem sempre são devidamente apreciados.

A cloaca demente

O pânico social decorrente da pandemia é provavelmente mais preocupante que a peste que o alimenta. Não quero com isto diminuir o impacto daquilo que parece tratar-se de uma evidente calamidade global. Mas esta nova peste prepara-se para semear uma crise mais profunda que a que temos ultimamente sentido nos vários domínios da sociedade. Se considerarmos separadamente alguns aspectos da vida e os respectivos contextos sociais, de que forma serão afectados pela situação atípica que viemos a arte e a política? 

O osso do tempo implicará novas exigências, é certo. Mas decorrente desta espécie de guerra bio-política (contra quê e contra quem?) que se instalou na esperança de uma vida asséptica, limpa e idealmente descolorida, temperada de todas as inauditas e insuportáveis tolerâncias que temos vindo a deduzir da parcimoniosa vida que nos é dada a viver que outro monstro verdadeiramente  implacável germina sob o pesar do tempo? 

A singularidade da distância é um imperativo que se justifica perante o facto do contacto físico ser fonte de contaminação. Congemina-se sobre a hipótese do outro se encontrar infectado ao nosso lado na fila do super-mercado. A excepção é, assim, transformada em prática normativa: o controlo, a vigilância, o fastamento, a cor da pele, a forma de como e a quem se reza, o corte do cabelo, o desenho dos olhos. A aceitação plausível do espírito drone actua perante a necessidade de uma vigilância prescrita por decreto. A realidade ultrapassou-se a si mesma. O risco de infecção afecta aqueles que de uma forma ou de outra se deixarem contaminar pela experiência social do isolamento, pela ignorância, pela inteligência de um vírus que se transformou na palavra que até aqui alimentava apenas as redes sociais: o vírus tornou-se efectivamente viral. 

Este vírus é o fim do tempo da aceleração, mas é ainda um vírus deste tempo. Será por isso urgente reflectir não na direcção do afastamento que a guerra da psicologia clínica quererá certamente impôr. Mas noutro sentido, o de reduzir o efeito do desejo e da nossa permanência sobre o supérfluo. A água deverá correr livremente das fontes.

No limiar da ficção cientifica estão lançados os condimentos de um novo tempo social em que o controlo se transformará na prática da supressão da liberdade individual como facto aceitável. Ao olho pineal, destinado a olhar e adorar o sol, acrescenta-se-lhe uma nova funcionalidade, a do controlo do território individual. 

Até quando não te poderei tocar? Até onde o estado de excepção é um ensaio politicamente aceite perante a evidência do contágio e do contacto? Simbolicamente, que significa este novo tempo social que implica na forma da separação a linguagem da segurança e do controlo? Que implicação efectiva sofrerá a arte relativamente ao contágio ou à falta dele? Segundo a cartilha do contágio, a arte, a política e a industrialização não sendo a mesma coisa vivem há muito de e através de uma espécie de contaminação mútua. A seiva deste processo resulta nem sempre em aspectos socais pacíficos. As novas armas de que falava Deleuze são os produtos da interferência tecnológica – a razão estiolou-se sobre si mesma. Este tempo é simultaneamente o tempo da cloaca e do dejecto.

Rosa e Crucificação

Primeiro ela chamou-nos a todos. Estávamos sentados e de pé, encostados às paredes, espalhados pela sala que servia de ante-câmara a outra onde se previa que a acção viesse a decorrer. Estávamos entregues a uma intelectualizada espera, forjada na tensão do vai vem que ela imprimia ao tempo.  Ela ia e vinha, atarefada no leva e traz, entre a sala onde nos haveríamos de acomodar e aquele espaço de espera que já era o tempo de ser.

Ela chamou um por um com uma voz pulmonar adocicada a cigarros. E a todos levou para dentro como que para dentro de si. Ela é uma mulher cujo rosto expressivo faz dançar palavras da boca para fora. Ela diz as palavras como o fazem as pessoa do teatro. Límpidas, mas cheias de uma vibração muito particular. Ela e as suas palavras são como as mãos em pele de certas pessoas rudes, cheias de gretas do lavrar que a vida faz nos corpos, das coisas que acontecem. A voz dela nos nossos ouvidos, repetindo o convite de cada vez que voltava a entrar: “Queres vir…”. E, um a um, lá fomos levados através da escuridão para uma sala maior, tocados na escuridão que ela construiu para nos tocar nas costas, nos braços e nas mãos, ao lugar que nos tinha destinado. Apresentou-nos a todas e a todos dizendo o nosso nome. E fê-lo pela simples razão de ali estarmos perante o que iria acontecer e por sermos cada um um de nós.

Depois falou da cona e vimos no vídeo lamber os dedos e metê-los na cona. Dois dedos dentro de si e a outra mão sôfrega sobre a primeira. O frémito de um desejo imaginado. Um desejo real e sentido. Tão real como a origem do mundo. Aquilo tudo aconteceu à nossa frente enquanto a noite se fechava definitivamente sobre a pequena cidade. Deliciem-se, este é o meu corpo, tomai e comei-o todo como se a vós mesmos vos comesses. Se a noite cai permite-se que os sonhadores se libertem da razão. Ali, naquele sítio, haveria de eclodir o fundamento de um derramamento sexual que só viria a morrer quando ela se excedeu, quando se ultrapassou num abraço prolongado.

Quer se tivesse tratado de puro erotismo (amor-paixão) ou da sensualidade de um corpo debaixo de uma luz, a intensidade foi tanto maior quanto nos sentimos ameaçados pela intimidade daquela mulher. Tomem lá, isto é tudo aquilo que eu sou. E ela falava enquanto se masturbava no video que acompanhava o que dizia, com voz de actriz a dizer palavras como escrevi que as dizia.

Sentiria como eu o excessivo tormento do amor descarnado a mulher que se sentava a meu lado? Enterrava-se pela cadeira abaixo na esperança de ali não estar sempre que a mulher nua se contorcia no swing da cadeira de baloiço. Foi ainda mais simbólico da verdade última do amor quando a actriz lhe pediu um beijo. Como se lhe pedisse a morte, como se se aproximasse para a ferir. Ela deu-lhe o beijo, mas antes disse,” Só se for na cara, sim?”, e deu-lhe na cara o tal beijo pedido.

Por fim, o olhar transformou-se naquilo a que podemos chamar vício e que resulta da profunda implicação do grupo perante a mulher. O tesão e o estiramento a nenhum outro amor de seres mortais poderia ser dito mais a propósito de que aquilo que ela mostrou. A pequena cidade não está a salvo das incursões voluntárias ao reino da pornografia residual da World Wide Web. Entre todas as mulheres, Rosa e Crucificação, de Mónica Calle.

Cartas do vale #17

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Um perfume tardio trouxe as cores de outono que julguei este ano perdido e sem outro remédio. Um ano agreste, diz-se por aqui na terra da terra. As árvores andam reviradas do avesso tal é espessura da secura nos campos. As pessoas com um ar menos apressado do que é costume conservam a alegria para outros dias que virão mais frios. Os animais que trazem nos braços são estranhas e bizarras criaturas que mais parecem demónios que bichos de verdade. É do tempo excessivamente quente, fê-los feios, sem utilidade, e se os não levam a beber e a comer morrem sem tino num canto qualquer. Há, espalhados pelo chão, montes de bichos mortos. Um impecável zelador de câmara, encarregue de limpar as vias, queima-os em pilhas e toma notas num caderno seboso dos números da tragédia. A secura é tanta que a água da boca se evapora no ar e produz pequenas flores de sal. Sob os pés é um mar de pó que se desfaz no ar com o andar. Ano muito ruim e com tanto pó como nunca se viu. O simples bater dos pés no chão dá com toda a gente em louca. Ano danado, diz-se por aqui na terra da terra, sem pinga de água que dê para saciar a sede. A sede é indecente. A sede é uma chicotada na boca. E a ferida fica e leva tempo a sarar. O pó é do andar. Quem mo diz é um vizinho que mora mesmo ao lado da minha casa, o pó que se levanta é da gente andar de um lado para o outro nos afazeres  do cuidar da terra. Diz ele estas coisas sem dentes na boca. A boca dele que é o buraco por onde entra e sai o vento que vem do deserto e seca tudo em volta. A mulher mando-a fechar a boca.  É ele quem me diz estas coisas quando me encontra no alpendre da casa dos dias mornos e vermelhos. Ele que já é menos aldeão desde que enfiou pela casa adentro um cabo eléctrico que se liga à televisão que o informa das notícias do mundo inteiro. De lugares que nunca imaginou que poderiam existir vêm notícias, umas boas, outras más. Às vezes não aguenta a desdita e dorme a sonhar com coisas que ele lá saberá o que são. Conta-me que o mundo em certos sítios está a arder.  O que ele não sabe é que o tenho visto da minha casa a bater punhetas lá fora. À noitinha, depois do fecho das emissões. Estou ao fresco da noite e vejo-o a descer pelo caminho das traseira de casa dele até a um certo sítio que julga isolado. Emita na perfeição o gemido das aves de rapina nocturnas quando ejacula para a secura da terra. O Chico da Clotilde masturba-se à noite depois da excitação provocada pelo programa de variedades em que entram  mamalhudas dançantes e um apresentador com um penteado mais estranho e bizarro que os bichos da terra. O Chico fica encostado a uma árvore de calças em baixo, agarrado à punheta. No outro dia, a mulher aflita com a demora do passeio apanhou-o naquilo. Disse-lhe qualquer coisa como se estivesse a chamar com doçura as galinhas para dentro. A Clotilde chama sempre as galinhas de forma delicada, e elas obedecem. E ele foi para dentro a puxar as calças para cima e a compor-se todo como um tordo cheio de tesão. Na manhã seguinte sairam cedo. Ouvi-lhes o portão a bater que bate sempre à hora certa. Como de costume, com os bichos deles enrolados no braço, direitos ao trabalho da terra.

Cartas do Vale #16

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Brumário

Sabíamos da existência do destino e de um conjunto de coisas que se moviam no espectro da sombra e que tolhiam as pessoas. Coisas que tomavam os muitos nomes que se lhe haveria de dar conforme a circunstância e a oportunidade semeada pelo destempero da vida. O negrume dos tempos, o inexplicável e o misterioso descrito com afinco em colecções de livros que iam do triângulo das Bermudas aos extra-terrestres. Eram, entre outros, os problemas do dia, de ordem quase metafísica com que se lidava com extrema precaução. Sabíamos disso, que vida se finava num abrir e fechar de olhos. Tínhamos visto ali nos quintais alguidares de tragédias domésticas, verdadeiras óperas encenadas por um Deus cruel a que se acendiam velas. E não havia cá razão que nos valesse que se impusesse contra a vontade do destino. Os desmandos do cornudo e da vida prática, pelo que se ouvia falar na televisão, faziam mossa da grossa na alma das pessoas. Os primeiros a tombar eram os comuns, depois os outros, com mais dinheiro para consultas no estrangeiro ou especialistas em trabalhos de mau-olhado. O destino é aquilo que acontece e é sem remédio, é o que é. A novidade fundava-se nas contrapartidas sociais anunciadas na revolução uns anos antes, e, o destino, de outra fibra, temia-se. Apareceu uma Santa qualquer em Santa-Cona-do-Assobio. E ríamos, sentados nos muros dos jardins agarrados às barrigas de tanto rir. Frases de cortar o silêncio para vencer o azar. Os muros dos jardins que ficavam em frente aos prédios, eram uma espécie de nártex florido à entrada da casa materna. Ria-se para afastar o mal que o destino podia trazer.

Por vezes, sem mais nada para fazer, debaixo de um sol tórrido, observávamos o tempo chegar. A hora de ir comprar um gelado ao Mini-Mercado que ficava do outro lado da rua. Um pequeno entreposto comercial que era palco de grandes ambições. Um projecto familiar trazido de uma aldeia qualquer, que tinha tido origem num tempo não muito distante. Ali viva o homem concreto no seu verdadeiro habitat. As tarefas diárias limitadas ao tempo, ao horário do expediente e ao plástico colorido gerido por um afável capitalista de bairro cujo propósito era o do enriquecimento rápido, a aspirar a todos os prazeres que o dinheiro podia trazer. Os raciocínios de vinha-d’alhos com origem numa estranha fé não apresentavam o menor desvio ao conservadorismo familiar. Ali não houve revolução nenhuma. Todo o animal procura o seu sentido de viver, é verdade. De que valem as grandes filosofias da existência se o conforto do plástico é superior à alienação que o trabalho fomenta. A máquina libertou o homem da escravatura da labuta, mas atirou com ele para um mundo de fumo onde apenas se vislumbram sombras e silhuetas que mal adivinhávamos a quem pertenciam. A mercadoria confunde-se com o trabalhador e tudo tem um preço. Sem exploração não há lucro. E o lucro, que vem a ser? Palavras supostamente sábias ditas vezes sem conta pelo pai do Quirino em palestras gratuitas à porta do Mini-Mercado. O pessoal mais novo à volta dele a chupar Olás e a ouvi-lo. A hora do Olá tinha disto e pastilha elástica azul, ou cor-de-rosa, no fundo do copo do gelado. A produção depende da substancialidade do consumo e vice-versa, coisas básicas, trocados. E continuava, comendo pevides, a falar e a cuspir para o chão as cascas das pevides. No consumir é que está o ganho. Se o trabalhador não produz, não ganha o dele. E o que toda a gente quer é ganhar o seu. É ou não é? Ser ou não ser daquele planeta, daquela mundanidade onde não existiam nem os grandes feitos da história, nem da literatura, nem da ciência, nem de coisa nenhuma que o valha,  a que apenas se aplicava uma espécie de puta-que-o-pariu, vamos mas é jogar à bola. O Quirino auxiliava o pai nestes discorres. Orgulhoso, abanava a cabeça em sinal afirmativo. Agarrado à vassoura, varria as cascas das pevides semeadas pelo pai à volta do pai. Eles, pai e filho, intuíam que, nesta cadeia de consumo, a produção e o ganho eram tudo. E mais pevides. A boca tinha sempre casca de pevides coladas aos lábios.  Explicava a sua perspectiva enquanto a força do trabalho e a consciência colectiva definhavam nos alguidares de plástico. Promoviam sem noção do histórico conceito de alienação, estabelecendo uma relação directa entre o objecto, o sujeito e as condições concretas em que se processava a produção e o trabalho. A actividade produtiva de que falavam era no fundo a fonte da consciência dos trabalhadores que passava na televisão. As gritarias que aquela gente que mal sabia falar fazia na televisão. As gritarias eram medonhas, obra do destiino, certamente. A minha mãe desfazia-se em considerações, Coitados, sem nada para comer quem é que não há-de ter razão para falar assim? O reflexo da sua actividade, o tempo e a minha história, aquela que me contavam, confirmava que o homem tinha evoluído de acordo com o trabalho e não o contrário. A história deles era outra. Era relatada no horizonte do Mini-Mercado que seguramente estava na vanguarda do grande capital moderno. Os ricos e os poderosos, patamar onde se situavam o Quirino e o seu pai, à escala da rua, ditavam, também ali, algumas regras. Os produtos fora do prazo eram anunciados com letras pintadas à mão. A curiosidade aguçava a procura e os Quirinos sabiam disso. É nesta relação social que crescia à tripa-forra o capital que haveria de transformar os Quirinos em micro-Quirinos. A semente voraz da nova economia fora lançada ao mundo por espécimes que certamente comiam pevides. A perspectiva bolsista de mercado estava para rebentar. A simplicidade, minha senhora? Temos a simplicidade de uns selvagens, dizia o pai do Quirino à mãe da Blimba. As palavras provinham-lhe da braguilha das calças sempre que falava com a mãe da Blimba. O gajo anda sempre cheio de tesão, dizia-se entre os putos. O reino do alguidar era ali, e a cores. Polímeros transformados em almofias vistosas. O micro-Quirino é um fragmento do original, uma evolução histórica a partir de uma matriz social degenerada. O seu aparecimento foi responsável pela poluição dos oceanos, transformados, entretanto, em sopa de plásticos. A popularização do Mini-Mercado e do saco com asas são os grandes responsáveis pela poluição dos mares. Os Micro-Quirinos chegavam ao mar levados pelas fortes correntes dos rios, soprados pela ventania que vinha do interior da terra. Um Quirino pensa como um saco de plástico e pega de estaca, videirinho. Estás aqui, estás a enfardar. O gajo armava-se ao pé dos putos. Cabeça de plástico é aquele que projecta a eternidade num curto espaço de tempo. O que é preciso é ser rico, está ouvir? Olha que levas uma sarrafada, caralho. Está a olhar para onde?  Os putos todos a rir. Um deles diz, Eh boi, eh lá, “ganda“ boi! O pai do Quirino diferenciava-se do filho pela cor do guarda-pó, como se na loja cada cor correspondesse a uma hierarquia na cadeia de comando. O ocre do pai era a cor da chefia. O azul índigo do filho, o da vulgaridade que se prestava a todo o trabalho sujo do Mini-Mercado. A mãe, multicolorida, era baixa e tinha um bigode de meter medo. Aquilo tinha uma ordenação rigorosa, indigentemente imposta de cima para baixo.  O pai comia atrás do balcão e tomava conta da loja no período do almoço. O filho comia com a mãe no 1.º andar do prédio de dois andares, mesmo por cima do Mini-Mercado. O pai comia sentado no banco alto do balcão com o prato pousado nos joelhos. Cheirava a banha que ficava guardada numa vitrine depois da secção e perfumes. Faziam férias na primeira quinzena de Agosto, no Almograve. Tinham lá uma casinha de madeira com um quintal à frente e, depois da praia, por causa das tosses do Quirino, iam para a aldeia dos pais dele que fica numa serra qualquer. Regressavam em Setembro para capitalizar a comuna que entretanto se deturpara em nome da unidade, da fraternidade e dos vários socialismo que se apregoavam na rua. Eu tenho um tio que tem um relógio em ouro maciço. Trabalha na Suíça, é encarregado numa fábrica de plásticos. O Quirino tinha um tio. Foda-se pá, o Quirino até tem um tio na Suíça.Toda a gente tem um tio, ou dois. Por vezes ficávamos a ouvi-lo falar aquelas coisas todas. Era um estupor, o Quirino. Só se armava em frente aos putos. Sem a mais significativa manifestação de génio, de singularidade, de jeito. Lérias, era o que aquilo era. E coisas destas aparecem vindas de todo o lado. Tenho um fartote de tipos cheios de si e empáfia. Surgiam no ar, eram pólenes da tosse, multiplicavam-se sem a mínima graça. Mas o pior, na geografia humana, é o interior e as suas aldeias, à imagem do litoral e das suas capitais. É desses sítios que afluem às capitais do litoral os micro-Quirinos: as capelas onde nasciam eram geridas por copistas de sacristia e uma espécie de padralhada que se sabia semear filhos entre as filhas dos outros. Com frequência esta gente ejaculava sem frémito pontos finais e vírgulas. Babam-se doutores que vivem à sombra da ausência de memória, e outros improfícuos que sabíamos existir. Há sempre gente inútil na sombra. A sombra era um perigo, mesmo sob a protecção de colares de alhos e cebolas. Os mandados das mães eram recados bíblicos. Coisas domésticas para fazer sopas transcendentes. Divino? Divinas eram as sopas.

Cartas do vale #15

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Eu tinha acordado com o alvoroço que fez um enorme gafanhoto verde preso no embaraço da rede que me protegia o sono das ferradelas dos mosquitos. Entrara desprevenido pela janela e fora cair na rede branca do sono. Soltei-o do óbice em que se via e, mal acordado, lancei-o pela janela fora ao campo aberto. E ele foi. À laia de solecismo, aquilo que a seguir poderá ter acontecido pertence ao entendimento geral do nosso conhecimento sobre a vida material. Essa mesma que interessa aos gafanhotos e restantes insectos e que diz respeito às particulares propriedades da natureza. Fui sentar-me à porta de casa sem mais para fazer, esperando receber da sombra de uma árvore grande que lá estava para o efeito o resto da sonolência da manhã. Encostei-me a ver passar as nuvens que sem peso se movem de Sul para todo o lado empurradas pelo vento. Quando o dia se preparava para se dobrar sobre si, desci à localidade e entrei num café que passei a frequentar. A mulher e o dono saudaram-me. Trouxeram-me um café e um copo de água. Ele apressou-se a limpar os cantos da mesa com um pano sujo de limpar tudo que trazia sempre pendurado à cintura. Depois acercou-se a mulher com o café e a água e perguntou-me, o Sr. Dr. não vai muito à missa, pois não? Eu nunca mais entrei numa igreja desde que deus se zangou comigo depois de uma violenta discussão sobre resultados desportivos, política e sexo, respondi com um sorriso que não e voltei ao que estava a fazer. O padre não vai gostar nada de saber que o gajo não vai à missa. Foi o que disse alguém que estava sentado nas minhas costas ao outro que estava ao lado dele. Bebiam e proferiam comentários surdos para as moscas.

A liberdade é  uma mulher. É quando ela se ri na casa de banho a pentear os cabelos que tem na cabeça. Foi o que escrevi no meu caderno e olhei através da grande janela do café que dava para a rua e vi a rua e as casas do outro lado da rua. Terá passado um carro, e depois outro. Quando ela se ri e aparece vinda sei lá de onde, como se amaranhasse pelas paredes, e ficasse escondida à espera de me ver passar. É quando ela se ri, a liberdade. A liberdade, tal como a ciência já era antes de existirmos, ou a pensar na falta que ela nos faz, ou já fez, ou fazia. A liberdade faz muita falta e toda a que se possa ter não é demais. É a ciência política que o diz, o senso comum. Não sei ao certo.  Houve um tempo em que a minha mãe ocupava o lugar de todas as mulheres que conheci depois dela. Ela a puxar-me pela mão, rua abaixo quando íamos ao mercado e eu resistir, talvez não quisesse ir. Moedas na carteira era o que ela tinha para comprar fruta e peixe. E a força das ordens que me dava que se misturava com o amor enorme que nos tinha todos. As moedas ganhavam verdete nas mãos do homem da peixaria, era um sinal de esperança, era o que ela me dizia do verdete. Ela enorme perante as mulheres e aquele verde nas moedas eram um sinal de esperança. Que raio de esperança era essa de que ela falava? O seu mundo que nada mudara desde que se apaixonara e eu nascera. O seu mundo que era uma espécie grande terraço descoberto, à mercê de todas as intempéries, um estendal aberto ao céu e as mãos com que fazia todos os mimos que me dava. A esperança é o que é.

Paguei e saí. Decidi lançar-me à água antes de subir ao meu promontório. Caminhei pela localidade e atravessei o lajedo do porto. Desci uma escadaria de pedra e afundei-me num areal branco sem ninguém. O mar era verde brilhante e transparente. E para sul espreitava para lá dos rochedos  cabeça do farol. No caminho vi um tipo de calças justas e sapatos de vela de camurça avermelhados. As calças tinham as bainhas viradas para fora e paravam acima dos tornozelos como nunca se tinham visto por ali umas calças assim. As pessoas olhavam para as calças do tipo com estranheza e humor. Um grupo de miúdos caminhava na sua sombra para lhe ver as bainhas das calças mais de perto. Será papeleiro?, perguntavam-se baixinho para não incomodar o estrangeiro. O tipo tinha uma irmã que vestia igualzinha a ele. Só a cor da camisola era diferente. Mais clara no tom, mas de cor muito semelhante. Ela fumava e tinha um ar enfadado, na certeza disso era ar de quem estava fartinha até ao cabelos de ali estar. Gritou para o rimão, vamos para o barco, ou não vamos? Depois apareceram dois amigos deles com passos de meninos ricos, como se valsassem, ou navegassem, e traziam garrafas e sacos de papel com mercearias. Usavam o mesmo estilo de corte nas calças. Os putos seguiram-nos com os olhos até que eles desapareceram num carro branco desportivo que tinham estacionado na praça do município. Um dos putos mais atrevidos disse com ar de entendido,  a gaja, logo à noite, leva na cona deles todos, ò lá se leva. Tão certo como estes dois que o mar há-de engolir. E apontava com dois dedos para os dois olhos da cara, enquanto os outros menos informados consentiam a informação como certa e sabida.

O alvoroço que os gafanhotos fazem quando ficam presos nas redes das camas. Malditos mosquitos, um horror.

Popular é o caralho.


A propósito de moedas de 2€, chamo a atenção que uma parte considerável dos nossos artesãos ficou bastante descontente com a escolha da “imagem” que cunhará a referida moeda. O pessoal das Caldas da Rainha não entende a razão da escolha do coração de Viana do Castelo, outros objectos de significativo valor artístico-popular poderiam ter sido considerados como altrenativa. Sei lá, lagostas, mexilhões, sapos, cãezinhos de loiça, ou, até mesmo “naperons” (sem a respectiva espanhola). Pois aqui fica o meu projecto, em nome de todos os ceramistas que tão honestamente fazem pela vida e levam longe o nome das Caldas da Rainha. A elas e eles que disto vivem: viva o caralho, pois!

Os cravos de todas as cores são vermelhos em Abril


E não o são por questões do sempre assim foi. São-no porque não poderiam ter outra cor. Vermelho é cor que não existe onde não há vida e a vida não se dá onde não há revolução. Em Abril todas as flores são cravos, vermelhas ou não. Aos cravos não se lhes muda a cor só porque sim. É preciso que nos convençam que a nova cor é mais vermelha que o vermelho original. Até melhor explicação, até vermelhos são aqueles que não são. A liberdade é de todos os cravos. E os cravos são vermelhos não por opção, mas por necessidade de terem feito uma revolução.

(Apropriação a partir de fotografia de Elmer Batters – Maria do Povo esgana fascista com a cona que a mãe lhe deu!)

Querida Burda! – ( Como quem escreve uma cartinha).


Fofa.

A menina enganou-se. A causa agora era outra. Desta vez não eram aquelas pessoas do programa do chichi-cocó, em que se pede às individualidades do mundo da bola e do espectáculo que digam lá o que levavam para a ilha deserta. Não era esse o programa, fofa. O que se pedia era que a menina dissesse e fizesse simbolicamente coro com outra espécie de gente socialmente mais comprometida que a malta da bola e do espéctáculo. Era assim como que uma espécie de Pirilampo Mágico, mas dirigido lá para fora, percebe?

Incrédulo não fiquei, acredite. Mas ó querida, levar jóias na mochila para se enfiar num barco com a marabunta? Aquilo não é propriamente uma excursão de escuteiros. E o piolho? Eu sei lá. Aquilo era a causa dos refugiados, sabe ?     R E F U G I A D O S.  Enfim. Deixe lá. Neste país também ninguém liga a coisa nenhuma. Andam todos a falar do tempo e da gravata do Louçã. Tenho cá para mim que ninguém reparou no detalhe das jóias.

Olhe fofa,  a terminar, andei a ver na internet uns apartamentos em Damasco e na faixa de Gaza. Nem lhe digo, encontrei uns giríssimos e amplos a preços muito convidativos. Crochet à parte, talvez valesse a pena a mudança. Mais não fosse mudava de ares.

Bem haja pelo espírito largo com que encara a vida.

Um generoso e fraterno abraço.