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Nekousagitan nasceu em Lisboa e é demasiado velha para andar a fazer bonecos e a ver desenhos animados. De dia, está a tirar um doutoramento em Pintura na FBAUL. Quando o sol se põe, faz parte do colectivo de zines Clube do Inferno (para compensar). Quando for grande, o seu sonho é ter uma dakimakura.

Yangire/Yandere: um tour pelas “meninas venenosas” na animação japonesa e não só

NOTA: O presente texto é uma tradução e adaptação do ensaio integrado no zine Muji Life + Yangire/Yandere.

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Yangire” e “yandere” são personagens-tipo originados na subcultura japonesa conhecida por otaku, grosso modo equivalente às culturas geek ou nerd no Ocidente. Mais precisamente, surgiram e floresceram dentro do manga, anime e fandom do moé, uma estética orientada para o público masculino e caracterizada pelo seu apreço por figuras do tipo “irmãzinha” e outras estripes de cuteness associadas. Quer a palavra “yangire” como “yandere” são trocadilhos que partilham o mesmo sufixo “yan”, de “yandeiru”, significando que algo ou alguma coisa está doente. O “gire” em “yangire” pede emprestada a conjugação verbal “kire”, que significa “cortar”, enquanto “dere” se refere a “deredere”, uma palavra onomatopaica que significa estar-se apaixonado. A parte final da palavra é, portanto, aquilo que separa o yangire e o yandere em termos de motivação: o primeiro, é movido por uma compulsão para cortar e talhar; o segundo, por sentimentos de amor. Resumindo e concluindo, o yangire traduz-se em personagens exteriormente cute e adoráveis mas propensas a transformarem-se em psicopatas sanguinárias quando irritadas, assustadas ou de algum modo stressadas. Da mesma forma, as personagens yandere são exteriormente cute e adoráveis, assumindo diferentes matizes de brutal, obsessivas ou pura e simplesmente maradas quando toca aos seus interesses românticos. O yandere é, por outras palavras, um “lobo em pele de cordeiro”, um stalker superprotector que não hesita em recorrer a todos métodos disponíveis (rapto, chantagem, tortura, assassinato, é só escolher!) para chamar a atenção da sua pessoa especial e remover qualquer obstáculo que entre eles se entreponha… Mesmo que, em casos extremos, tal signifique “proteger” a pessoa amada matando-a.

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Olhos e expressões faciais típicas de personagens yangire e yandere.

O yangire e yandere inserem-se assim, em traços gerais, no arquétipo da dupla personalidade, e apesar das metades “Mr. Hyde” poderem estar mais ou menos presentes, manifestam-se habitualmente em mudanças de humor violentas e súbitas explosões de fúria assassina despoletadas pelos chamados “butões berserk” (que, muitas vezes, alteram a aparência física das personagens ao des-“cutificar” os seus traços cute). O ocasional yangire ou yandere masculino existe nos media japoneses mas, sem surpresa, a maioria destas personagens são femininas, endorsando uma longa tradição de excessos emocionais incontroláveis por parte de mulheres histéricas. Yuno Gasai, da série Mirai Nikki (“Diário Futuro”, animada em 2011 d’aprés a banda desenhada homónima de Sakae Esuno), tornou-se a poster child do yandere, originando o muito difundido meme Yandere Trance ou Ecstatic Yandere Pose (também conhecido por Mirai Nikki Face ou Yuno Face).

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Capa do primeiro volume de Mirai Nikki, com Yuno em primeiro plano e Yukkii atrás, em segundo. 

Yuno é uma menina amorosa de cabelos cor-de-rosa apaixonada pelo protagonista masculino Yukiteru “Yukkii” Amano, um rapaz forçado a participar numa espécie de battle royale, que ela jura proteger a qualquer custo – geralmente, por processos envolvendo stalking agressivo e carnificina. No final do primeiro episódio, depois de Yukkii (absolutamente aterrorizado) descobrir que terá de lutar pela vida nesse jogo mortal, é consolado por uma Yuno ruborizada com os olhos transbordantes de loucura que lhe diz “Não te preocupes, Yukkii… Eu vou (ahn~♥) proteger-te”.

Sequência do anime Mirai Nikki com Yuno Gasai em Yandere Trance ou Ecstatic Yandere Pose.

A performance vocal febril da actriz Tomosa Murata, não parca em subtexto erótico, juntamente com a pose dramática das mãos e a iluminação sinistra, tornaram esta cena numa imagem explorável com centenas de variações paródicas, em que personagens de todo o tipo são “yanderificados” pelos fãs usando as feições afeminadas de Yuno como modelo.

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Como “yanderizar” personagens, utilizando a popular Kirino Kousaka de Oreimo como exemplo. 
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Fan art representando personagens de séries populares (Touhou Project, Nichijou, Naruto, Yu-Gi-Oh!) na pose yandere de Yuno.

Adicionalmente, como ambos os tipos estão ancorados em mundos moé densamente povoados por raparigas pubescentes fazendo coisas fofinhas, a feminização das disposições afectivas do yangire e yandere corresponde também a uma infantilização. Por essa razão, estes tornam-se numa espécie de aparatosos Enfant Terrible (fórmula definida por crianças com tendências homicidas), revertendo para a nossa ansiedade paradoxal de que demonstrações extremas de cuteness são a algum nível perturbadoras, não naturais ou manipuladoras (talvez fruto do seu efeito “não-exactamente-humano”, ecoando o uncanny valley de Masahiro Mori). Como nota Sianne Ngai em Ugly Feelings, esta demarcação de sujeitos como emocionalmente anómalos, quer por défice quer por excedente, é na realidade uma forma corrente e enraizada de “outrização” daqueles que aparentam estar fora do privilégio branco, masculino, hétero-cis, adulto e/ou fisicamente apto e saudável. O conceito de “animatedness” avançado por Ngai, isto é, o estado de “ser-se movido” (que, na genealogia da autora, remonta às técnicas rudimentares de animação), é eficaz no seu apontar das implicações ideológicas dessa “interação ambígua entre coisas agitadas e pessoas desativadas” ou de “o passional e o mecânico” (Ngai 2007, 91), que frequentemente encontramos em ficções de possessão de corpos femininos dentro da literatura e cinema de terror. Em House of Psychotic Women, um livro semi-autobiográfico sobre as representações da neurose feminina nos filmes de terror e exploitation, a autora Kier-La Janisse compara a sua própria experiência de doença mental com a mais notória rapariga-adolescente-possuída-pelo-demónio do cinema: “Sentia-me como a Regan d’O Exorcista, emitindo estes insultos grosseiros e venenosos ao mesmo tempo que sentia que as palavras estavam a vir de outra pessoa” (Janisse 2012, 136). Similarmente, o yangire e yandere são, entre o reportório de personagens-tipo do moé, aquelas mais “possuídas” por uma defectividade emocional; assombradas por um sentimento de ventriloquismo e manipulação das suas vozes e corpos ao alternarem entre a inocência e a monstruosidade.

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O corpo de Regan, de 12 anos, possuído pelo Diabo em O Exorcista.

Um exemplo notável da ligação do yangire e yandere ao marionetismo é o início de Elfen Lied, adaptado para anime em 2004 a partir do manga de Lynn Okamoto.

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A diclonii Lucy de Elfen Lied. A parte direita da sua cara mostra o capacete usado durante a sequência inicial da série.

Centrando-se nas interacções entre os seres humanos e uma espécie mutante chamada diclonii, cuja aparência é idêntica à das pessoas excepto por dois pequenos cornos nas suas cabeças, os primeiros minutos de Elfen Lied tornaram-se célebres pelo seu uso de violência gráfica e “pinhatas de sangue” (personagens cujo propósito é serem reduzidas a uma polpa de entranhas). À medida que a personagem principal, uma diclonii chamada Lucy – que, não por acaso, é uma menina amorosa de cabelos cor-de-rosa como a Yuno de Mirai Nikki −, executa a sua fuga da instalação onde se encontra aprisionada, ela utiliza braços-tentáculo invisíveis para trucidar os seus captores, deixando um banho de sangue pelo caminho.

Primeiros minutos do anime Elfen Lied. Aviso que há sangue; MUITO SANGUE.

Durante esta sequência, Lucy torna-se marionete e marionetista, manipulando os cordéis com mãos ocultas ao mesmo tempo que é metaforicamente mecanizada e desumanizada pela sua progressão imparável. O contraste memorável entre o corpo nu de Lucy e o capacete de metal que lhe envolve a face (e que simbolicamente lhe inibe a voz, fazendo-a silenciosa durante toda a sequência), reforça o aspecto automatizado da dessensibilização dos diclonii. Por fim, Lucy é atingida na cabeça, causando o desenvolvimento da persona alternativa Nyu, uma criança selvagem extremamente querida, inocente e desajeitada, depois acolhida por um casal de jovens que lhe dá o nome da única palavra que ela pronuncia (“nyu~”).

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Fisicamente, Nyu distingue-se de Lucy pelos seus tarime, i.e. olhos doces e descaídos típicos de personagens moé ingénuas.

Como seria de esperar, esta divisão entre Lucy-a-pessoa-de-destruição-massiva e Nyu-a-ingénua acaba por torna-se no argumento central da série. Porém, a sequência de abertura mantem-se particularmente eficiente na sua representação da vontade ambígua dos yangire e yandere: simultaneamente, os mais agressivamente inervados e os mais possuídos dos personagens-tipo moé.

Em última instância, se como aponta Ngai “a cuteness é uma estética da impotência” (Ngai 2012, 64), o yangire e yandere podem ser entendidos como uma vingança do sujeito “cutificado”, batendo-se sadicamente contra o sadismo do seu dono. Não é de admirar, portanto, que o comportamento dos yangireyandere seja tão frequentemente justificado por traumas passados, mostrando-os como sofredores de abuso físico ou psicológico, numa lógica circular em que a vítima se torna vilão. É o caso quer em Mirai Nikki como em Elfen Lied, uma vez que Yuno era fisicamente maltratada e feita passar fome pelos pais por não corresponder às suas expectativas, e é indiciado que a propensão dos diclonii para a violência é resultado de abusos por parte dos humanos. A experiência da abjecção, i.e. de ser-se rejeitado e reduzido a um estado de desamparo, miséria e desespero, é de facto fundamental no retrato e desenvolvimento de muitas destas personagens, como a icónica yangire Rena Ryuuguu da franchise de sucesso Higurashi no Naku Koro ni (“Quando as Cigarras Choram”).

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Rena Ryuuguu, segurando na sua mahadinha ou nata (um instrumento de jardinagem japonês). Tão fofinha, ou será que não?

Marcada pelo divórcio traumático dos seus pais, Rena (que é uma rapariga doce e amigável excepto quando não é) sofre de um sentimento agudo de abjecção maternal e auto-abjecção. Este traço reflecte-se quer no seu fascínio pela lixeira ilegal da terra, onde passa o tempo numa caça ao tesouro por coisas “fofinhas” (normalmente, pedaços de lixo esquisitos); quer em cortar-se a si própria numa tentativa de remover o sangue materno que, nas suas alucinações, está infestado de vermes.

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A lixeira da cidade em Higurashi no Naku no Koro ni. Rena tem aqui a sua “base secreta” numa carrinha antiga (esvaziada e preenchida com coisas de que ela gosta), para onde se retira quando está angustiada.
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Rena alucina com vermes no seu sangue.

Apesar da sua neurose não se definir em função dos interesses amorosos, Rena (que devido ao divórcio dos pais, odeia mentiras, especialmente vindas de pessoas que lhe são próximas) também tem os seus momentos yandere, como a famosa cena da porta na versão animada da série. Nesta, Rena tenta forçar a entrada em casa do seu crush, acabando por tornar-se violenta quando este lhe dá uma desculpa esfarrapada, e aterrorizando-o ao ponto de este lhe entalar violentamente os dedos na pressa de fechar a porta.

Sequência yandere entre Rena e o seu interesse amoroso no anime Higurashi no Naku Koro ni.

A abjecção é pois uma componente-chave quer no yangire como no yandere, cujo amor assassino emerge em muitos casos de um desejo extremo por ligações físicas e espirituais. Na genealogia do yandere, esta obsessão pode ser traçada até ao caso Sada Abe de 1936, uma famosa assassina sexual que capturou a imaginação pública japonesa e alimentou o movimento artístico conhecido por ero guro nonsense (abreviado para ero guro ou guro). Sada Abe foi uma prostituta que estrangulou eroticamente o seu amante até à morte, castrou o cadáver e passeou-se pelas ruas de Tóquio com a genitália na sua malinha de mão durante dias até ser detida. Quando questionada sobre porque o tinha feito, respondeu que “amava-o tanto que não conseguia aguentar, por isso decidi que o queria todo para mim” (Marran, 163).

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Sada Abe pouco depois da sua detenção em 1936, na estação de polícia de Takanawa em Tóquio.

À medida que a investigação avançou, vieram à luz detalhes relevantes sobre a vida de Abe, incluindo ter sido vítima de violação por um conhecido; acontecimento que, na altura, sentenciava raparigas de tenra idade ao estatuto marginal das mulheres não-casadas vistas como “damaged goods”. Isto, por sua vez, precipitou uma série de eventos trágicos, desde tornar-se uma delinquente fugida de casa a ser forçada pelo pai a prostituir-se, bem como a miséria resultante dos seus dias enquanto trabalhadora do sexo: os maltratos pelos proxenetas, o contrair sífilis, o desespero financeiro, o aprisionamento em casas de geishas, até tornar-se finalmente numa prostituta em fuga. Como discutido por Christine Marran em Poison Woman, apesar destas revelações, os discursos coevos sobre Abe eram essencialmente naturalizados e caucionários, enquadrando o seu crime como resultado desejos instintivos e primários (repetidamente descritos como infantis, insectoides, regressivos), e alertando para os perigos de uma maturação sexual desregulada nos membros do sexo feminino. Isto reflectia e consolidava o arquétipo enraizado da dokufu, ou “mulher-veneno”, que Abe veio a personificar no século XX, alinhando a criminalidade feminina com o potencial para a destruição na libido de todas as mulheres.

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A “dokufu” (“mulher-veneno”) tornou-se uma buzzword na Era Meji, temendo-se uma epidemia de mulheres desviantes e assassinas. Takahashi Oden, representada na figura, é considerada a mulher-veneno mais icónica deste período. 

Apesar da própria Abe reconhecer que as suas acções eram, em certa medida, motivadas por uma desapropriação de poder (“disempowerment”) com base no seu sexo e classe social – recorrendo ao assassinato e à mutilação na tentativa de alcançar uma igualdade sexual em relação ao homem−, os escritos do pré-guerra despolitizam as suas reivindicações, atribuindo-as a uma suposta psicossexualidade desviante inata e (ab)usando-a para validar uma agenda de opressão de género. Numa reviravolta surpreendente, contudo, a cultura popular do pós-guerra alterou esta posição dominante, reconvertendo Abe num ícone de liberdade, auto-afirmação e emancipação feminina recorrente na ficção pulp e cinema dos anos 70 japoneses. Ainda assim, de acordo com Marran, esta viragem tem menos a ver com a luta das mulheres do que com o emergir do “homem masoquista” como contra-discurso sobre a masculinidade, gerando um culto da depravação feminina “através dos qual a política totalitária e os valores culturais masculinos são explorados e criticados” (Marran 2007, 136).

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Still do pink film de Noboru Tanaka, A Woman Called Abe Sada (1975).

As fórmulas do yangireyandere herdam este masoquismo masculino e o tom grotesco do ero guro, combinando aquilo que seriam normalmente personagens moé benignas com a carga negativa da transgressão na “mulher-veneno”. Como resultado, têm uma qualidade inerentemente sensacionalista e chocante, que distingue manga e anime como Mirai Nikki e Elfen Lied de retratos mais delicados e completos da insanidade e depressão em séries como Neon Genesis Evengelion. Ao transformar mulheres psico-patológicas em caricaturas distorcidas, as “mulheres venenosas” do yangire e yandere – agora “meninas venenosas”− perpetuam mitos perniciosos sobre a feminilidade e a doença mental que são mais reveladores dos medos (hegemónicos) masculinos do que de outra coisa. No entanto, se formos momentaneamente além da questão da má representação (uma estratégia que Ngai sugere em relação à “animatedness”), podemos não obstante encontrar questões de afecto, vontade e poder únicos às estéticas do grotesco e do grosseiro.

Um exemplo disto será Akira Kogami do anime quintessencialmente moé Lucky Star (2007), baseado na banda desenhada yonkoma de Kagami Yoshimizu. Akira é uma ídolo de 14 anos que, juntamente com o seu assistente Minoru, co-apresenta “Lucky Channel”, um curto segmento informativo no final de cada episódio de Lucky Star que (supostamente) promove as personagens e eventos principais do programa. Tem cabelo cor-de-rosa (notam o padrão?), usa um sailor suit com mangas supercompridas e exibe uma personalidade energética, cuteonsteroids, que é na verdade uma fachada para a misantropa intratável que se esconde por baixo, não acima de recorrer ao abuso verbal e físico para impor a sua vontade.

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Akira Kogami, co-apresentadora de “Lucky Channel”, posando na sua indumentária de ídolo.

À medida que os episódios avançam, a piada é que, apesar dos melhores esforços do seu assistente, a personalidade tóxica de Akira desvia invariavelmente o “Lucky Channel” do seu propósito original como “cantinho” para os fãs, transformando-o ao invés numa comédia negra autónoma sobre a relação profissional cada vez mais abusiva do duo. E, atenção: à típica moda da “menina veneno”, a violência é quase exclusivamente do feminino sobre o masculino.

A dupla personalidade de Akira no “Lucky Channel”.

O “Lucky Channel” separa-se do resto do programa não apenas por quebrar a “quarta parede” mas também pelo seu tom negro, inervado e cínico, contrastando com a alegria e descontração slice-of-life de Lucky Star. Adicionalmente, a “yangirização” de Akira é abertamente enquadrada como uma questão laboral, não-tão-subtilmente apresentado a sua neurose como resultado do envolvimento precoce, aos três anos, na indústria altamente competitiva dos tarento (personalidades da televisão). Entre outros detalhes mórbidos, ficamos a saber que os seus pais são divorciados e que a mãe administra as finanças de Akira, usando o dinheiro para alegadamente comprar produtos de marca para si própria enquanto dá à sua filha uma exígua mesada. Akira é, portanto, representada como uma slave to the wage, amargurada pela pressão e expectativas de uma indústria, família e pais exploradores, mas também obcecada com a progressão na carreira, poder e prestígio. Como uma Regan invertida, o seu corpo é possuído pelo trabalho intensivo de uma persona cute que rápida e facilmente se desmorona em poses nada femininas ou infantis (e.g. coçar a virilha, fumar cigarros em série), olhos franzidos e uma voz de bagaço. Além de que, porque percepciona o facto de ser relegada para o outro lado da “quarta parede” como uma desigualdade de estatuto, Akira é consumida pelo monstro verde da inveja, uma emoção que, como proposto por Ngai, é historicamente feminizada e proletarizada (com o mal-afamado conceito de “pennis envy” no olho da tempestade). Akira torna-se mesquinha e paranóica, ressentida pela popularidade dos protagonistas e vingando-se no subordinado Minoru – que tem um papel menor no programa principal e cuja mobilidade a irrita mais do que tudo o resto −, utilizando métodos extraordinariamente cruéis e antagonísticos, desde a humilhação verbal a formas cada vez mais extremas de agressão física (culminando num cinzeiro atirado à sua cara).

Exemplos do abuso verbal e bullying de Akira sobre Minoru.

As tentativas repetidas por parte de Akira de entrar no programa principal são, por sua vez, constantemente frustradas. Em ocasiões várias, fica abruptamente doentíssima, ou é-lhe dado uma cabine de karaoke em vez de um palco de concertos, ou a sua canção é interrompida a meio, aparentemente barrada de entrar num mundo ficcional habitado por estudantes de liceu ou trabalhadores imunes à violência do trabalho sobre o corpo e alma da mão-de-obra. Por fim, a venenosidade de Akira precipita a destruição do próprio “Lucky Channel”. Depois de ser enviado numa missão com risco de vida para recolher água potável das nascentes do Monte Fuji (que Akira acaba a cuspir por não estar suficientemente fresca), Minoru, para lá do seu ponto de ruptura,  destrói completamente o cenário do segmento aos murros e pontapés.

Minoru a (finalmente!) passar-se depois do abuso escandaloso de Akira, deixando o cenário de “Lucky Channel” em ruínas.

O yangire e yandere personificam, potencialmente, este ciclo nefasto de abuso de uma forma transgressiva, mas não necessariamente progressista, procurando abertamente a negatividade ao invés do realismo ou de uma melhor representação. Expressam de modo grosseiro e directo o nosso medo do reprimido (quer do psicologica como do socio-economicamente reprimido), aproximando-se do princípio junguiano da “enantiodromia”: os extremos que se transmogrificam nos seus opostos-sombra. Quanto mais fofinha e domesticada a rapariga, então, mais sinistro e selvagem o seu veneno. O mesmo se pode aplicar ao dizer shakespeariano de que há um método na loucura, tornando o seu contrário – uma loucura no método – tão ou mais verdadeiro. (Na dúvida, dêem um passeio até à vossa loja Ikea ou Muji mais próxima, onde a mera superabundância de ordem e utilitarismo é suficiente para levar qualquer um à loucura). O jogo vídeo Yandere Simulator, presentemente a ser desenvolvido e descrito como “um jogo de acção furtiva sobre perseguir um rapaz e eliminar secretamente qualquer rapariga que pareça interessada nele, ao mesmo tempo que se conserva a imagem de uma estudante de liceu inocente”, aborda este aspecto processual da disrupção no yangire e yandere.

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Ilustração promocional do jogo vídeo Yandere Simulator, mostrando uma estudante do liceu apaixonada com um rasto de sangue e corpos atrás de si.

Com o subtítulo “Don’t Let Senpai Notice You” (um trocadilho com o popular meme da internet I Hope Senpai Will Notice Me), a personagem principal utiliza uma larga gama de processos “racionais” para eliminar as rivais, desde da carnificina pura e simples à encenação de acidentes ou à sabotagem social, não deixando de lidar com preocupações prácticas como desfazer-se dos cadáveres, limpar o sangue ou destruir outros indícios incriminadores.

Breve apresentação e tutorial de Yandere Simulator.

Afinal de contas, o que nos assegura de que o nosso próprio raciocínio, a nossa ordem, não é retorcida? Como disse Yuno Gasai: “Eu sou louca? O que é louco é outro mundo em que eu não posso estar contigo.” Este oscilar na fina linha que separa a normalidade da loucura é válido para muitos produtos da cultura popular feminina, como o shoujo manga (banda desenhada japonesa para raparigas), cujos diálogo e demonstrações românticas de um sentimentalismo excessivo, se tiradas do contexto, poderiam facilmente passar por cenários yandere de possessividade, stalking e obsessão.

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Um exemplo de discurso romântico num shoujo manga com um tom yandere.

O yangire e yandere são, na sua essência, personagens de uma bimodalidade sensacionalista cujo trabalho afectivo pode, apesar desta legibilidade “excessiva”, tornar-se extraordinariamente opaco, apelando tanto a leituras radicais como reacionárias. Entre as suas posições extremas – cuteness e horror, razão e loucura, passional e mecânico, controlador e controlado…− está uma lacuna onde reverberam visões do feminino, do infantil, do masculino, de classe e do trauma. Acima de tudo, ambas as fórmulas exploram o eterno conflito entre Eros e Thanatos, as pulsões para a vida-amor e a morte, numa forma concentrada que sonda a nossa inveterada suspeição e sentimentos disfóricos para com tudo aquilo que seja excessivamente… simpático.


LIVROS

Edelman, Lee. 2005. No Future: Queer Theory and the Death Drive. Durham, NC: Duke University Press.
Janisse, Kier-La. 2012. House of Psychotic Women: House of Psychotic Women: An Autobiographical Topography of Female Neurosis in Horror and Exploitation Films. Godalming, U.K.: FAB Press.
Johnston, William. 2004. Geisha, Harlot, Strangler, Star: A Woman, Sex, and Morality in Modern Japan. Columbia University Press.
Marran, Christine. 2007. Poison Woman: Figuring Female Transgression in Modern Japanese Culture. Minneapolis: University Of Minnesota Press.
Ngai, Sianne. 2007. Ugly Feelings. Cambridge, MA: Harvard University Press.
Ngai, Sianne. 2012. Our Aesthetic Categories. Cambridge, MA: Harvard University Press.

WIKIS

 

Know Your Meme-Dere; I Hope Senpai Will Notice Me; Mirai Nikki Yandere Face; Yandere Simulator.
Higurashi no Naku Koro Ni Wiki:  The Dam Construction Site; Ryūgū Rena.
TvTropes: Ax-Crazy; Bitch in Sheep’s Clothing; Berserk Button; Beware the Nice Ones; Beware the Silly Ones; Cute and Psycho; Enfant Terrible; The Fake Cutie; Girl with Psycho Weapon; Grotesque Cute; The Ingenue; Person of Mass Destruction; Split Personality; Tareme Eyes; Yandere; Yangire.
Wikipedia: Elfen Lied; Ero guro; Future Diary; Glossary of anime and manga; Higurashi When They Cry; Lucky Star; Moe; Sada Abe.

OUTROS SÍTIOS

The Yandere Game Development Blog
OLF, i.e. Olf Le Fol. 2010, Aug 4. Your Guide To Yandere Love, Too awesome not to post [Comentário em fórum online]

Yurikuma Arashi, ou a revolução segundo as ursas lésbicas (Parte 2)

YuriPt2_fig1Ginko e Lulu demonstrando a verdade revolucionária.

Na primeira parte deste post dedicado a Yurikuma Arashi, a mais recente série de animação do criador japonês Kunihiko Ikuhara (ou Ikuni, for short), falei sobre a sua premissa e algumas referências que lhe dão forma. Por um lado, as apropriações de filmes de terror, com Suspiria de Dario Argento a encimar a lista; por outro, a articulação das tradições female-oriented e male-oriented do yuri, um género de ficção envolvendo relações homossexuais entre mulheres. Nesta segunda parte, veremos como Yurikuma reflecte dois temas que são transversais e centrais na obra de Ikuhara: a natureza das figuras de autoridade  e, claro, o amor.

YuriPt2_fig2Life Cool, Life Sexy e Life Beautiful examinando escrupulosamente uma revista para adultos. Este e outros desenhos foram apresentados numa exposição dedicada à produção de Yurikuma Arashi na galeria pixiv Zingaro, em Tóquio.

Se não deu para perceber até agora, o “aparelho judicial” de Yurikuma é uma das minhas partes preferidas deste anime e devia ter o seu próprio spin off. Habitando algures entre os andaimes da Muralha da Exclusão e o espaço metafísico onde decorre o Julgamento do Yuri, esta entidade misteriosa – executada por Life Sexy, Life Cool e Life Beautiful (juiz, acusação, defesa) – é responsável por alguns dos momentos mais divertidos, provocadores e nonsense da série. Para além da troca de lingo jurídico absurdo e “ursificado” entre Sexy, Cool e Beautiful (argumentos “ad ursam” seguidos da invariável sentença “isso é sexy, shaba-da-doo”), o julgamento coloca aos réus (ou “réursos”) a escolha entre “tornar-se invisível” ou “comer humanos” (há variações na formulação da pergunta, mas o sentido é o mesmo). Esta questão, podendo parecer à primeira vista só mais uma idiossincrasia disparatada, é na verdade o elevator pitch subliminal que, em poucas palavras, resume o ethos da série; mais à frente, veremos como.

YuriPt2_fig3Life Beauty objecta durante um Julgamento do Yuri.

YuriPt2_fig4 YuriPt2_fig5O juiz Life Sexy e a (con)fusão de registos aparentemente contraditórios: o cartesianismo da linguagem jurídica por um lado (“Este tribunal é a balança que pesa ambos os mundos [dos humanos e ursos] imparcialmente”); e uma sentença emocional, por outro (“Isso é sexy!”).

No entanto, é a sequência de transformação das ursas Ginko e Lulu em magical girls (ou magical bears?), e o borderline pornográfico êxtase místico-erótico de Kureha, que mais têm levantado suspeitas sobre a salubridade ideológica de Yurikuma Arashi. Parece, de facto, haver algo de absolutamente errado neste yuri que recebe um selo de aprovação depois de ser declarado sexy pelos únicos três homens da série (existem mais dois, mas um é uma criancinha e outro é genderqueer)… um tipo de obscenidade na linha de como o Pornhub sugeriu que se celebrasse a legalização do casamento gay nos Estados Unidos.

YuriPt1_fig18 YuriPt1_fig19YuriPt1_fig20O arrebatamento de Kureha Tsubaki.

Mas qual é, então, o endgame deste tribunal perverso no contexto de Yurikuma? Em The Pervert’s Guide to Cinema, Slavoj Žižek observa como a casa da mãe de Norman Bates em Psycho (que como se vê aquiaqui e aqui, serve de esqueleto à moradia da protagonista Kureha), com os seus três pisos – rés-do-chão, primeiro andar e cave−, ilustra a própria estrutura tripartida do edifício psíquico (ego, superego e id, respectivamente). A lição freudiana de que o superego e o id estão intrinsecamente ligados é indiciada na sequência em que Bates transporta a mãe do piso superior para o subterrâneo, com esta protestando primeiro como figura de autoridade, e depois revertendo para o nível da obscenidade. Nas palavras de Žižek, “o superego não é uma agência ética, […] é uma agência obscena bombardeando-nos com ordens impossíveis, rindo-se de nós quando, claro, não conseguimos cumpri-las”.

Este deslizamento da autoridade para a obscenidade é um tema central tanto em Revolutionary Girl Utena, na misteriosa entidade Fim do Mundo, como em Mawaru Penguindrum, na figura da Princesa do Cristal. Esta última é particularmente reveladora dos inner workings das instâncias superegóicas na obra de Ikuhara: possuindo o corpo da doce e inocente Himari, irmãzinha mais nova de Kanba e Shouma, é a Princesa do Cristal que ordena a busca pelo inefável penguindrum, ao mesmo tempo que enxovalha verbalmente os seus irmãos e vai perdendo peças da sua já de si reveladora indumentária.

YuriPt2_fig11A Princesa do Cristal ordena a busca pelo “Penguindrum”, que ninguém faz a mínima do que seja.

YuriPt2_fig12 YuriPt2_fig13 YuriPt2_fig14Lava a boca com sabão, Princesa do Cristal!

[SPOILERS MODERADOS DAQUI PARA A FRENTE!]

Também em Yurikuma Arashi, ao contrário do que a configuração de tribunal do Julgamento do Yuri possa sugerir, não estamos perante uma agência ética, mas uma arena obscena em que se debatem o ego ideal em versão “comodificada” de slogan publicitário (sexycoolbeautiful) e um torvelinho de pulsões eróticas e destrutivas (do qual a insistência no termo “comer” pelas ursas, com toda a sua ambivalência entre o sentido literal e o “comer” sexual, é um exemplar). Afinal, como se admoesta mais tarde na série, “o amor é uma emoção selvagem. Amar alguém é dominar essa pessoa. É quereres tornar-te um só com ela de tal forma que a consomes”.

YuriPt2_fig15O power play interno da ursa Ginko com o seu “desejo”.

Mas, apesar de tudo, Ikuni é um romântico incorrigível que acredita no “amor verdadeiro” enquanto força revolucionária, e acção basilar da qual brota toda a possibilidade de mudança. Por isso mesmo, no Julgamento do Yuri, a ideia repetida à exaustão é a de que “nunca desistiremos do amor” – uma militância amorosa−, por oposição a aceitarmos tornarmo-nos invisíveis (que é como quem diz, juntar-nos ao “rebanho”).

YuriPt2_fig16A “militância amorosa” é introduzida logo nos primeiros minutos da série, antes da morte trágica de Sumika (a namorada de Kureha). 

O amor para Ikuhara, como para o filósofo francês Alian Badiou, é um (o?) “procedimento de verdade”, e a sua concretização aproxima-se da badiouiana Cena do Dois: um espaço purificado e descentrado onde o impasse da não-relação sexual (Lacan) é resolvido, criativamente, através do filtro da diferença, e o mundo renasce do ponto de vista de Dois em vez de Um (desafiando uma longa tradição filosófica e literária em que o amor é percepcionado como “tornar-se um” com a pessoa amada). Nas palavras de Badiou himself, o amor testa “como é o mundo quando experienciado, desenvolvido e vivido do ponto de vista da diferença e não da identidade” (22).

YuriPt2_fig17_a YuriPt2_fig17_b YuriPt2_fig17_cLife Sexy e os seus two cents sobre pergunta “o teu amor é verdeiro?”, que sempre precede o Julgamento do Yuri. Shaba-da-doo.

Por esta razão, em Yurikuma, o “amor verdadeiro” exige não só uma reinvenção da identidade, como uma superação do nosso “desejo”, narcisista e implacável na objectificação do Outro. Encontramos esta última condição na sequência em que a ursa Ginko abandona, muito literalmente, a personificação do seu yokubou (“desejo”, “apetite”, “luxúria”) em favor de um “amor verdadeiro” que, diz-nos numa cena de ascensão que está entre as mais bonitas da série, nunca nos deixa sós.

YuriPt2_fig18“Não esquecerei o amor. Não desistirei do amor. Encontrei-o finalmente, o amor verdadeiro. E o amor verdadeiro não se quebra por causa de uma qualquer tempestade. O amor verdadeiro nunca nos deixa sós!”

Já a primeira condição, é simbolizada no acto de destruir o próprio reflexo no espelho (um equivalente à “casca do ovo” em Revolutionary Girl Utena) e concretizada na transformação para um estado compósito entre o humano e urso os dois extremos opostos da experiência em Yurikuma –, a que assistimos, desde o primeiro episódio, na “magical girlização” de Ginko e Lulu. Sem querer spoilar o grand finale da série, basta dizer que reside nesta hibridização o golpe de génio que instaura a Cena do Dois no derradeiro fôlego de Yurikuma Arashi (ou, se quiserem ser mega-spoilados, podem carregar aqui e aqui).

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YuriPt2_fig20A mitologia do Narciso, olhando para o seu próprio reflexo (de Caravaggio, em cima, e do picture book da mãe de Kureha, em baixo), é uma parte importante da narrativa do amor em Yurikuma Arashi.

YuriPt2_fig21 YuriPt2_fig22Espelhos quebrados, reflexos estilhaçados.

E o que dizer, enfim, sobre a Tempestade Invisível (cf. Parte I), aquela que está no título (“arashi” é tempestade em japonês) juntamente com as lésbicas e as ursas? Badiou recusaria a ideia de uma “política do amor” – para ele, ambos lidam com verdades fundamentalmente distintas: o colectivo, as massas, por um lado; o Dois, por outro –, mas Ikuni parece discordar. Ou, pelo menos, gasta grande parte do seu tempo a arquitectar situações nas quais as semelhanças formais entre a política e o amor, enquanto procedimentos de verdade, produzem intersecções produtivas e esclarecedoras. Esta tendência não é nova, ora veja-se Utena como “rapariga revolucionária”, ou ligação isotérica de Mawaru Penguindrum aos atentados da Aum Shinrikyo no metro de TóquioYurikuma não é excepção, e a relação Kureha/Ginko/Lulu é particularmente exemplar de como os procedimentos do amor e da política estão ligados na cabeça de Ikuhara.

YuriPt2_fig23Ginko e Lulu encorajam um amor militante e revolucionário.  

Porque se, como diz o ditado, “dois é companhia, três é uma multidão” – colocando o interesse romântico em colisão com a interferência de partidos externos (a “vela” proverbial) –, que dizer quando esta “multidão” integra o Dois num triângulo amoroso que o torna possível, não através da rivalidade, mas da aliança genuína entre o casal e o terceiro partido? Haverá algo a retirar, neste caso, de uma tangente entre as verdades do amor e da política, ou do Dois e do colectivo? Yurikuma ocupa-se deste cenário através da singularidade do triângulo Kureha/Ginko/Lulu (distinto dos triângulos mais “clássicos” de Utena e Penguindrum), que desafia uma categorização clear-cut: a sua carnalidade evidente ultrapassa os limites da amizade, que dispensa “ressonâncias com o prazer do corpo” (36); nem pode ser arrumada estritamente como ménage à trois ou love rivals,  embora ambos estes “arranjos” sejam sugeridos, abordados e, no fim, superados.

YuriPt2_fig24 YuriPt2_fig25O imaginário titilante da ménage à trois em Yurikuma.

Para mim, a expressão que melhor descreve o feeling (e os feels) do triângulo Kureha/Ginko/Lulu é “liberté, égalité, fraternité” (assim mesmo, já que Yurikuma é uma série é francófila). Sem dúvida, não é por acaso que La Liberté Guidant le Peuple de Delacroix é uma das muito reconhecíveis pinturas discretamente penduradas nas paredes da sala de estar de Kureha (sendo a outra é Le Rêve, de Rousseau).

YuriPt2_fig26Estas canecas arrumadinhas em cima da mesa são uma das imagens mais amorosas que guardo de Yurikuma. O esquema cromático da série (azul, vermelho, verde) tem sido alvo de várias interpretações, como esta. Eu acrescentaria ainda a “Liberdade” para Kureha a “Igualdade” para Ginko, e a “Fraternidade” para Lulu.

De facto, se há uma mensagem nesta série, é a do potencial aglutinante do “amor verdadeiro”, capaz de infundir toda uma equipa ou rede amorosa. O próprio Badiou nos lembra, aliás, que “não devemos subestimar o poder que o amor tem para cortar diagonalmente através das mais poderosas oposições e separações radicais” (29). Este “amor verdadeiro” é, portanto, também um “amor livre”, como o espaço em que Kureha flutua com Ginko e Lulu, por oposição à “privatização” do amor fechado em caixas que encontramos noutros momentos e personagens da série.

YuriPt2_fig27O “amor verdadeiro” simbolizado pelo mel que “brilha e tem a mesma cor que uma estrela”, guiando os amantes ao encontro do “beijo prometido”.

YuriPt2_fig28As caixas são um motivo recorrente na Ikuhara-land. O seu significado varia, mas costuma andar à volta das ideias de restrição, isolamento e objectificação.

Tendo em conta, porém, o pano de fundo macabro de Yurikuma Arashi (em que o ambiente selecto de uma prestigiada all-girls school é minado pela proliferação de carabinas, execuções e matança), talvez seja mais adequado falarmos de uma versão inicial do moto republicano: “liberté, égalité, fraternité, ou la morte”. A última parte foi suprimida pela sua conotação com O Terror, mas como vimos antes (cf. Parte 1), o terror – na sua encarnação pop, através do horror cinematográfico − é precisamente o wild card que demarca Yurikuma dos anteriores projectos de Ikuhara.

YuriPt2_fig29…ou as ursas lésbicas.  

Que, pouco a pouco, este terror assuma um formato abertamente bélico – revisitando-se, através de flashbacks históricos, uma guerra sangrenta entre humanos e ursos−, testemunha o interesse de Ikuhara em pensar “o regime de contradições e violência” (61) da experiência amorosa quando o conceito de “inimigo” (que, em condições normais, lhe seria alienígena) entra na equação. O subtítulo de Yurikuma Arashi, “Love Bullet”, poderá aludir a este alinhamento ou ressonância entre transgressões, quando o “amor verdadeiro” se torna um acto de resistência e, literalmente, uma questão de vida ou de morte.

YuriPt2_fig30 YuriPt2_fig31A representação do horror da guerra em Yurikuma varia entre imagens  realistas e o teatro de sombras, que é outro dispositivo preferido de Kunihiko Ikuhara.  

São estas propriedades transformativas e colantes do amor que tanto ameaçam as instâncias autoritárias de ambos os lados da Muralha da Exclusão, que instrumentalizam o “amor” como máquina opressiva. Do lado dos humanos e como avatar do estado/partido, a Tempestade Invisível, com o seu modus operandi algures entre a peer pressure e o assassinato político, buscando incessantemente purgar o “mal” e os “traidores” que divirjam da unanimidade grupal. Do lado dos ursos, a igreja de Kumaria, explorando a vulnerabilidade dos fracos e desamparados (ursos de que “ninguém precisa” ou que “ninguém quer encontrar”), oferecendo o amor de uma transcendência Todo-Poderosa em troco de vassalagem aos seus autointitulados representantes – quando, na verdade, sabemos que é no Tribunal da Exclusão que se exerce a vontade da deusa Kumaria. 

YuriPt2_fig32 YuriPt2_fig33Em cima, a insígnia militar do KMTG, a swat team anti-urso da Tempestade Invisível. Em baixo, um sermão na Igreja de Kumaria.  

No final da série, esta ideia sai reforçada pela rapariga anónima que, depois de presenciar a verdade produzida pelo evento amoroso, acaba por abandonar a Tempestade Invisível para salvar uma ursa maltratada. Este acto de rebelião altruísta, que certamente a tornará no próximo alvo a abater, confirma-nos que o “amor verdadeiro”, para Kunihiko Ikuhara, é contagioso. É um salto para o olho da tempestade, com a certeza de que, por muito que se perca ou seja tirado pelo caminho, nunca nos tornaremos invisíveis. Por isso, nas suas histórias, a verdade amorosa alinha-se sistematicamente com a verdade política, e a microevolução do Dois é apresentada como semente de possibilidade para a revolução mundial.

Afinal, como diz Badiou, o amor não é senão um pequeno comunismo.

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BADIOU, Alain. Entrevista com TRUONG Nicolas. In Praise of Love. Traduzido por Peter Bush. Londres: Serpent’s Tail, 2012.

Yurikuma Arashi, ou a revolução segundo as ursas lésbicas (Parte 1)

YuriPt1_fig1O processo revolucionário em curso de Ginko e Kureha.

Kunihiko Ikuhara – ou simplesmente Ikuni, pet name atribuído afectuosamente pelos fãs – é uma figura de culto e homem de múltiplos talentos, mais conhecido como realizador da mítica série de animação Revolutionary Girl Utena. Ao longo da sua carreira, trabalhou na indústria do anime (incluindo no mega-popular Sailor Moon), compôs e interpretou bandas sonoras, escreveu novelas e banda desenhada, supervisionou jogos de vídeo e musicais e, acima de tudo, construiu uma linguagem autoral única, densamente simbólica, surreal e repleta de leitmotivs reconhecíveis. Não por acaso, David Lynch e Stanley Kubrick figuram entre os realizadores pelos quais Ikuhara nutre uma admiração confessa.

YuriPt1_fig2bÉ o Kunihiko Ikuhara.

Apesar de todo o street cred, a filmografia dos seus projectos autónomos é curta: depois de Utena, em 1997, só voltou aos ecrãs 14 anos depois, em 2011, com Mawaru Penguindrum. É por estas e por outras que, quando se anuncia um anime do Ikuni, este não é apenas um anime; é um evento por direito próprio.

YuriPt1_fig3Ikuni in a nutshell

Foi o caso de Yurikuma Arashi, uma série de 12 episódios que veio aquecer a temporada invernosa entre Janeiro a Março deste ano. O título pode ser traduzido livremente como “Tempestade das Ursas Lésbicas” (sim, leram bem!) e é isso mesmo que nos entrega… bom, pelo menos a parte das lésbicas e ursas, já que a tempestade é mais metafórica. A mim bastou-me ver o genérico para me vender a série, já que o de Yurikuma é um dos mais bonitos, fofinhos e deliciosamente perversos que se viram nos últimos tempos.

Curiosamente, ao contrário das aberturas dos anteriores Utena e Penguindrum, em que a separação e os desencontros são motivos recorrentes (aludidos, por exemplo, nas mãos que se tentam agarrar mas acabam por escorregar ou largar-se), o de Yurikuma é todo ele sobre o toque, o contacto e reunião entre corpos, rematado pelos potes de mel entornados que parecem tudo querer envolver na sua doçura.

YuriPt1_fig4Mãos que se separam em Revolutionary Girl Utena.

YuriPt1_fig5YuriPt1_fig6Mel e mimos em Yurikuma Arashi

Mas não nos deixemos enganar: separação e exclusão, sacrifício, crime e castigo, são temas centrais ou não fosse esta série Ikuhara em esteroides de uma ponta à outra. E o amor, claro, como força inexorável em torno da qual todos estes gravitam e embebe o visual da série, através das citações e détournement de elementos do shoujo manga (banda desenhada para raparigas), tipicamente associado ao romance.

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Os motivos florais são  um staple do shoujo manga e um dos preferidos de Ikuhara.

A outra grande referência é Suspiria, de Dario Argento, um clássico do cinema de terror sobre uma academia de ballet demoníaca que enforma Yurikuma nos pastiches arquitectónicos e alguns plot points significativos. Pelo meio, identificam-se ainda referências a outros “terrores” ilustres, como Psycho de Hitchcock ou The Shining de Kubrick. Todos são filmes onde o edifício ou a casa tem um peso particular, contribuindo para uma topografia psíquica de que Ikuhara é comprovadamente fã (vejam-se as arquiteturas de Utena ou Penguindrum). Em Yurikuma, este “terror” é mediado por uma sensibilidade pulp irónica − a expressão kuma shock! (“choque urso!”) tornou-se num meme instantâneo entre os fãs da série −, criando contrastes propositados e uncanny com os acontecimentos no ecrã, alguns deles francamente perturbantes.

[SPOILERS DO PRIMEIRO EPISÓDIO DAQUI PARA A FRENTE!]

A história começa com Kureha Tsubaki, uma estudante num liceu para raparigas. Correcção: num mundo para raparigas, em que não se avista um único homem nas redondezas (os únicos personagens masculinos da série aparecem em momentos circunscritos e sempre fora da “realidade” ou “actualidade” narrativa). Nesse mundo, os humanos construíram a chamada Muralha da Exclusão (o termo em japonês é “danzetsu”, palavra polissémica implicando “separação”, “interrupção”, “ruptura”, “extinção”), uma “muralha” que é menos uma parede sólida do que um skyline omnipresente de prédios com gruas e andaimes, qual “obras de Santa Engrácia” sem fim à vista.

YuriPt1_fig8A omnipresença sinistra da Muralha da Exclusão.

O objectivo desta vedação gigantesca é separar o mundo humano dos ursinhos kawaii que têm o péssimo hábito de comer rapariguinhas ao pequeno-almoço. Não é por mal; está simplesmente na sua natureza!

YuriPt1_fig9Ursos serão ursos serão ursos.

No primeiro episódio, Kureha vive em beatífico amor lésbico com a sua colega Sumika, quando esta última é comida por uma ursa antropomórfica infiltrada no liceu. Enquanto procura vingar a morte de Sumika e lidar com eventos traumáticos do seu passado, a pobre Kureha vê-se ainda a braços com uma organização maléfica, a Tempestade Invisível, cujo objectivo é “excluir” (leia-se: executar) dissidentes que ousem não se conformar à normatividade social (simbolizada por um padrão em forma de bando de pássaros, decalcado de Argento). A jornada de Kureha completa-se com Ginko e Lulu, duas ursas que têm a sua própria agenda e cujos destinos amorosos se entrecruzam profundamente com o da protagonista.

YuriPt1_fig10YuriPt1_fig11Em cima, a morte trágica de Sumika Izumino. Em baixo, a mentalidade de rebanho da Tempestade Invisível.

YuriPt1_fig12 YuriPt1_fig13A Tempestade Invisível em acção, seleccionando a próxima vítima com smartphones. Note-se o padrão do bando de pássaros sob as mesas escolares, em baixo.  

 A coroar este setup está o Tribunal da Exclusão, onde ocorre o Julgamento do Yuri, presidido por três ursos antropomórficos: Life Sexy, o juíz (com a sua catchphrase “shaba-da-doo”); Life Cool, o advogado de acusação; e Life Beautiful, o advogado de defesa.

danzetsu_2Tribunal da Exclusão: Life Sexy (ao centro), Life Cool (à esquerda) e Life Beautiful (à direita). 

YuriPt1_fig15Ginko e Lulu num Julgamento do Yuri.

Esta entidade, à laia de superego reinante sobre humanos e ursos, tem como função aprovar o yuri e desencadear uma sequência de transformação à la magical girl com as ursas Ginko e Lulu, Kureha e metáforas menos-que-subtis envolvendo lírios e mel.

As implicações ideológicas de Sexy, Cool e Beautiful – na prática, os únicos homens da série – aparecerem para julgar as protagonistas e aprovar as suas ligações amorosas em sequências coreográficas hipersexualizadas não passaram despercebidas, e têm levantado a sua quota-parte de polémica na fandom. Ikuhara não é, porém, nenhum estranho a empregar a linguagem do fan service e do ecchi de modo a provocar os espectadores, revolvendo tabus (homossexualidade, incesto, violação, pedofilia) e escarafunchando as políticas do gaze e relações de poder para efeitos cómicos, simbólicos, creepy e/ou simplesmente desconcertantes (de uma forma que, quer em Utena, como em Mawaru, como em Yurikuma, passa recorrentemente pela consciência dos instrumentos ópticos e do seu papel na objectificação escopofílica dos corpos).

YuriPt1_fig21bSelo de aprovação pelo Tribunal da Exclusão.

Tal como o nome indica, o yuri é um tema central em Yurikuma Arashi, e embora no início deste texto o tenha traduzido livremente por “lésbicas”, o termo refere-se a um género de ficção − manga, anime, novelas… −  envolvendo relações homossexuais entre mulheres (literalmente, “yuri” significa “lírio”; daí a abundância simbólica desta flor na série). Ao tematizá-lo, Yurikuma posiciona-se (aparentemente) na tradição de séries yuri dirigidas a um público masculino como Strawberry Panic! ou Sakura Trick, algo desde cedo sugerido pelas imagens promocionais em que as protagonistas são representadas com panchira (um clássico do male gaze no anime). Ikuhara parece, assim, dar razão às vozes que o acusam de ter um fetiche pela transgressão, e não pelo progresso, social.

YuriPt1_fig22 YuriPt1_fig23Conheça as protagonistas. E as suas cuequinhas.

Não descartando um fundo de verdade nesta acusação (fan service autorreflexivo não deixa de ser fan service), há que dizer que nos anime de Ikuhara nada é o que parece, ou no mínimo há vários estratos sedimentados sob a sua superfície. Não é estranhar, portanto, que em Yurikuma o voyeurismo masculino apareça enquadrado pelas imensas referências espalhadas à série Maria-sama ga miteru (literalmente, “A Virgem Maria está a ver”), abreviada para Marimite. Marimite é talvez  o mais icónico yuri contemporâneo, particularmente celebrado por ter reanimado o género “classe S“, uma forma quintessencial de girls‘ culture japonesa com origens no início do século XX, dirigida a um público feminino adolescente e focada na componente romântica e espiritual das relações entre raparigas, mais do que na sua sexualização. Os paralelismos são muitos,  mas o mais inequívoco é Kumaria, a deusa que “está a ver” no universo de Yurikuma e acaba por revelar-se decisiva na resolução da série. “Kumaria”, ou “Kumalia”, resulta da contracção entre a palavra japonesa “kuma” (“urso”) e o nome “Maria”, num trocadilho que, numa versão pouco elegante em português,  poder-se-ia traduzir como “Virgem Ursaria”.

YuriPt1_fig24Capa da primeira novela de Maria-sama ga miteru

YuriPt1_fig25 YuriPt1_fig26Em cima, pétalas brancas, vermelhas e amarelas e pose reminiscentes de Marimite. Em baixo, uma representação da deusa Kumaria.

Ao justapor duas faces da moeda do yuriYurikuma aponta para a ambivalência enraizada neste género ficcional onde coexistem sob a mesma designação produtos male-oriented e female-oriented (algo que não acontece, por exemplo, no caso do boys’ love). Reconciliar estes dois polos não é tarefa impossível nem inédita, até porque a linha que os separa é, não raras vezes, esbatida. A escolha de Akiko Morishima para character designer de Yurikuma também não será neste sentido acidental, sendo uma autora que tem publicado as suas histórias quer em revistas de yuri para raparigas, como a Comic Yuri Hime, quer na sua “irmã” Comic Yuri Hime S, dirigida ao público masculino e mais acentuadamente moé.

yuri_himesExemplos de capas das revistas Comic Yuri Hime (esquerda) e Comic Yuri Hime S (direita). A diferença de estilos é bem visível (mais shoujo na primeira, mais moé na segunda), mas no interior esta distinção é menos marcada – principalmente, desde que as duas revistas se fundiram em 2010, e muitas séries male-oriented foram integradas na Comic Yuri Hime.

A diferença é que, em Yurikuma Arashi, não se trata de uma paródia ou apropriação (Strawberry Panic! e Maria†Holic, por exemplo, são deliberadamente derivações paródicas de Maria-sama ga miteru), nem de uma flexibilização do imaginário para agradar a um público-alvo alargado. Antes, ao introduzir estrategicamente elementos das tradições masculina e feminina do yuri, Ikuhara parece interessado em mobilizar esta hibridez não de forma a reuni-los num todo resolvido, mas deixando visíveis as suas (problemáticas) costuras. E é assim que, em Yurikuma, podemos encontrar o discurso do amor espiritual (ren’ai) importado da “classe S” ao lado de (yurirape fantasies, ou paródias ordinárias do male gaze seguidas do Ave Maria de Bach-Gounod. Chamem a polícia!

Na próxima parte: mais ursas lésbicas, claro, porque o mundo precisa disso.

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LANÇAMENTOS: MAGA E QCDI 3000

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No próximo dia 19 (sexta-feira), pelas 20h na Oficina do Cego, realizar-se-á o lançamento lisboeta do Maga, uma publicação Clube do Inferno/Chili Com Carne/Thisco.

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Com o subtítulo “Colecção de ensaios sobre banda desenhada e afins”, Maga compila escritos recentes de membros do Clube e amigos sobre BD e suas afinidades infinitas, entre eles, dois textos previamente publicados aqui no L´obéissance est morte − agora disponíveis para ler com calma e sem distracções, em formato de livro. Para além destes, há muito mais para usufruir: textos do João Machado (que edita o volume) publicados no Mashnotes e Clube de Leitura Gráfica, design do João Sobral (Panda Gordo) que também participa com um texto, ilustrações do Tiago da Bernarda (Gato Mariano) num texto do Marcos Farrajota (Chili Com Carne), e ainda uma entrevista inédita ao Tiago Baptista (Façam Fanzines e Cuspam Martelos).

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Trata-se de um “regresso ao papel” destes textos online, ambicionando dar continuidade a uma tradição de escrever sobre e discutir banda desenhada em Portugal, bem como à crença de que a articulação e coordenação de pequenos produtores tem mais e melhores resultados do que trabalho corporativo exangue. É com todo o gosto que convidamos os leitores do L´obéissance a juntarem-se a nós em conversa sobre este e outros temas… E como no Clube do Inferno acreditamos que a prática e teoria são inseparáveis, produziremos ainda uma serigrafia com desenho do André Pereira feito especialmente para a ocasião, que será oferecida com o livro!

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Adicionalmente, para quem gosta de banda desenhada, música e festa, o Clube do Inferno e a Chili Com Carne organizam no dia 18 (quinta-feira) nas Damas, pelas 22h, o lançamento do novíssimo QCDI 3000: FEAR OF A CAPITALIST PLANET, um livro de grande formato reunindo quatro histórias dos autores do Clube, entre o fantástico, o político e o onírico. Às 23h, haverá concerto do músico convidado, Filipe Felizardo, seguido do unDJ MMMNNNRRRG a rematar a noite. Apareçam!

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Para mais informações, confiram os eventos do Maga e do QCDI 3000 no facebook!

Girls gone wild, west and black (Parte III)

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A modelo Buriteri, ícone do estilo ganguro, posando na revista Egg.

Na primeira e segunda parte deste post, trilhámos uma genealogia da equivalência entre delinquência sexual e delinquência racial no conceito moderno de shoujo (“jovem rapariga”), desde a school girl da Era Meiji até às kogyaru nos anos 90, passando pelas moga nos anos 20 e 30 e as prostitutas pan pan no pós-guerra. Nesta terceira e última parte, retomamos onde deixámos – as kogyaru –, para assistirmos à sua mutação extrema nos estilos ganguro e yamamba.

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Kogyaru com “cara negra,” ou ganguro.

Em “The History of Gyaru”, David Marx (2012) observa que “em finais dos anos 90, a subcultura kogyaru original, de delinquentes dos liceus privados de Tóquio, espalhou-se de repente a quase todas as raparigas adolescentes japonesas – quer no estilo, quer na linguagem”. Esta difusão massiva foi o resultado de todo um cocktail de factores: desde o estabelecimento do grande armazém Shibuya 109 como Meca da moda gyaru, tornando o estilo acessível a uma clientela mais vasta de classe média, média-baixa e suburbana; até ao aparecimento de estrelas pop associadas ao gyaru, como a cantora Namie Amuro; passando pela popularização de revistas gyaru de cunho lowbrow como a mítica Egg (extinta recentemente, em 2014), com how-to guides para estilos cada vez mais extremos; e a propagação da subcultura a zonas de Tóquio fora de Shibuya, como Ikebukuro e certas zonas de Shinjuku.

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Edifício do grande armazém Sibuya 109 em Tóquio.

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Esquerda: capa do primeiro disco de Namie Amuro, Original Tracks Vol.1 (1996). Direita: capa do primeiro número da revista Egg (1995).

Com esta “mainstreamização”, a subcultura gyaru tornou-se o palco de uma inesperada luta de classes. De um lado, as miúdas dos colégios privados (e suas wannabes) com chapatsu e peles douradas, que continuavam a alimentar as fantasias sexuais das revistas masculinas (o chamado “Shibuya-kei“, ou “estilo de Shibuya”). Do outro, uma nova vaga de raparigas que, para horror geral (e, em particular, das ditas revistas masculinas), faziam questão de torrar a pele em solários e usar bases negras até conseguirem uma perfeita blackface (o “Kamata-kei”, ou “estilo de Kamata”, referindo-se a uma área menos abastada da capital japonesa).

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Capa do livro Shibuya-kei vs. Kamata-kei (1997), de Hironobu Baba, um dos primeiros trabalhos sobre a “luta de classes” na cultura gyaru dos anos 90.

Estas últimas eram delinquentes e dropouts da classe operária e bairros suburbanos de Tóquio – ou seja, de origem yankii, uma subcultura tradicionalmente androcêntrica –, que reformularam o gyaru à medida dos seus valores de ostensiva revolta contra a sociedade. “Extremismo” tornou-se a palavra de ordem, um move necessário agora que o decadentismo endinheirado das kogyaru originais tinha sido absorvido pelo mainstream e abundavam salaryman em Shibuya, atraídos pela promessa do enjo kousai. É neste contexto de declínio do kogyaru que ascende, na viragem do século, a mais escandalosa encarnação do gyaru até à data: o ganguro (“caras negras”) e, na sua ponta mais extrema, as yamamba (“bruxas”).

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A blackface do visual ganguro.

Para além da pele negra, o visual ganguro completava-se com cabelos descolorados e platinados com madeixas (chamados messhu, do francês mèche), maquilhagem branca sobre os olhos e lábios, longas pestanas falsas revestidas por camadas espessas de rímel e botas de plataforma absurdamente altas, projectando uma imagem agressiva e um bravado em tudo contrário à aparência cutesy-sexy das kogyaru. Mais do que impressionar rapazes, o gyaru tornou-se sobre impressionar outras raparigas, numa competição interna em que elas se copiavam entre si, com pouca ou nenhuma consideração pela libido masculina.

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Postura agressiva de uma yamamba.

Como se isso não bastasse, as yamamba – uma referência paródica às bruxas de montanha do folclore japonês e do teatro Noh – conseguiram ser ainda mais outrageous: acrescentaram autocolantes kawaii e purpurinas nas bochechas, pinturas de rosto tribais (as infamous riscas brancas no nariz), roupas fosforescentes e metalizadas, cabelos hirsutos com extensões cor de arco-íris, flores tropicais de plástico, colares étnicos, lentes de contacto coloridas, nail art com ornamentos miniaturizados híper-complexos, tatuagens temporárias, chapéus de cowboy, enfim, todo um getup garrido em que os significantes ocidentais eram ampliados e distorcidos beyond recognition. Marx (2012) sintetiza na perfeição quando diz que “se o ganguro estava a levar os aspectos naturais do estilo surfista para extremos não-naturais, o yamamba era toda uma máscara com quase nenhuma relação com o estilo mainstream”.

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Esquerda: representação de uma yamamba no teatro Noh. Direita: a yamamba enquanto street fashion.

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Grupo de yamamba, trajadas a rigor, “aterrorizam” Shibuya.

Com o ganguro e yamamba, a hostilidade face às gyaru atingiu um pico. Como sugere Sharon Kinsella (2005), a arena mediática tornou-se não só terreno fértil para manifestações de uma longa lista de preconceitos raciais e xenófobos latentes, como para o reemergir de uma tendência – enraizada na produção intelectual nipónica – de dissolução da sociologia feminina numa ideia de “etnicidade feminina”, muitas vezes acompanhada pela adopção jocosa de um léxico pseudocientífico e para-antropológico. Esbatendo os contornos entre diferença de género e diferença racial, o seu estilo de vida dito “primitivo” foi articulado como, literalmente, uma nova raça indígena de Shibuya, fruto da decadência dos costumes japoneses e aculturação pelos povos latinos, ciganos e africanos.

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Uma “indígena” das ruas de Shibuya.

É justo ressalvar, contudo, que as próprias raparigas procuraram uma aproximação a esta identidade abjecta mais do que uma qualquer dinâmica transculturalista. Tal como a estética sunny California esteve nas origens do paragyaru (“paradise gals”) no início dos anos 90 (motivada pela popularidade global de séries como o Baywatch), a referência mais próxima para as ganguro e yamamba no imaginário mediático japonês era o popular Adamo-chan – caricatura racista de um aborígene criada pelo comediante Toshiro Shimazaki, em 1985 –, frequentemente citado como inspiração para a típica maquilhagem branca.

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Adamo-chan (esquerda) como origem da maquilhagem branca das ganguro e yamamba (direita).

Em entrevista a Jonathan Ross, na série documental Japanorama, duas yamamba referem a influência de Adamo-chan.

Nos media, assistiu-se também à repetição exaustiva da ideia de que as ganguro e yamamba eram feias, sujas e estúpidas e, como tal, impróprias para “consumo”. Em programas de variedades, grupos de pivots enxovalhavam as raparigas, comentando, na melhor das hipóteses, como era um desperdício (“sem maquilhagem vocês até são giras…”) ou, na pior, decretando-as simplesmente incompatíveis com o sexo feminino (“És um travesti? É que pareces ter aí uma barba por fazer!”). Em qualquer dos casos, a mensagem era simples: nenhuma delas iria conhecer o seu futuro marido naquele estado. Subjacente a estas afirmações, espreitava o fantasma da agenda etnocêntrica cultivada pelas autoridades japonesas durante grande parte do século XX (com o seu cúmulo nas prostitutas pan pan no pós-guerra), segundo a qual a função reprodutora e a maternidade deveriam estar reservadas às raparigas de puro-sangue nipónico.

Exemplos da recepção negativa às yamamba nos media mainstream.

Ironicamente, como nota Marx, o extremismo das ganguro e yamamba levou a que fossem descartadas como simples outcasts, dissipando em larga medida o pânico da era kogyaru, “quando toda a gente estava preocupada com as filhas das boas famílias se afogarem na ambiguidade moral dos anos da Bolha” (Marx 2012). Inacomodáveis dentro dos limites normativos do género e etnicidade japoneses, estigmatizadas como delinquentes antissociais de classe baixa, as gyaru milenais habitaram um espaço de abjecção e tabu em que o sexo, a raça e a classe se miscigenavam nas margens exteriores da ordem social. O surgimento do termo “gyanimal” para descrevê-las (contracção de “gyaru” e “animal”) é uma entre muitas instâncias visíveis desta desumanização em favor de um estatuto animalizado, que as ganguro e yamamba (fieis à sua reputação de bad girls) pouco fizeram para desmistificar. Antes, a animalização era precisamente a questão – o crítico cultural Hiroki Azuma (2009) compara-as a outra subcultura “abjecta” da pós-modernidade japonesa, os otaku –, e as raparigas escolheram rolar com essa bola.

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Gyanimals: as ganguro e yamamba incorporaram na sua indumentária os chamados kigurumi, i.e. pijamas de corpo inteiro representando animais ou personagens de desenhos animados.

Em revistas como a Egg, as “caras negras” mais populares, como a icónica modelo Buriteri, parecem estar 24/7 em modo de party girl desvairada, numa espécie de spring break eterno em que a boca é usada menos para falar do que para produzir sorrisos histéricos e caretas grosseiras para a câmara. A adopção do hipnótico Para Para como dança gyaru par excellence, com movimentos sincronizados aos ritmos frenéticos do Eurobeat, hiper techno e trance, é bem exemplificativa desta “ideologia ganguro“.

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Buriteri numa capa da revista Egg.

Excerto sobre o Para Para no Japanorama.

Com o aparecimento de casos extremos como as ogyaru (“o,” neste caso, significa “sujo”) – uma facção restrita de ganguro e yamamba que festejavam toda a noite, viviam nas ruas, usavam marcadores para pintarem as sobrancelhas e, diz-se, “não tomavam banho, lavavam os dentes ou mudavam de roupa interior” (Marx 2012) –, o conceito de “gyaru” fundiu-se de forma literal com a degradação e sujidade que caracteriza os estados abjectos. Num programa de televisão coevo, os apresentadores visitavam o apartamento de umas ogyaru, relatando toda a porcaria que encontravam: desde iogurtes podres no frigorífico (ao ponto de se tornarem uma “massa negra com consistência de borracha”), passando pelo banho de leite usado na banheira misturado com restos de óleo bronzeador, até ao furão doméstico perdido no meio do lixo num quarto há mais de três dias. Tal componente escatológica e grotesca, de degradação corpórea e espiritual, é um subtexto global que as ganguro e yamamba de alguma forma abraçaram, como estilo de vida feérico, trashy e elegíaco destas material girls no ocaso da civilização.

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Esquerda: uma ogyaru entrevistada para a televisão. Direita: o estilo de vida hobo associado à subcultura ganguro e yamamba.

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Exemplo de look escatológico numa revista ganguro.

É claro que, com tais desenvolvimentos, o estilo tronou-se cada vez menos apelativo para a girl next door que não estivesse disposta a cometer suicídio social (à semelhança das Harakiri School Girls de Makoto Aida), acabando por restar apenas uma mão cheia de praticantes hardcore nas ruas de Shibuya.

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Uma “bruxa” na multidão.

É certo que, com o declínio das “caras negras” e das “bruxas”, as gyaru regressaram, circa 2005, à whiteness e imagem de feminilidade mais glamorosa, sexy e normativa de estilos como o agejou, o koakuma, o himegyaru ou o oneegyaru (curiosamente, ao mesmo tempo que o chamado “síndroma do celibato” se torna uma realidade cada vez mais palpável na sociedade japonesa). Ainda assim, desde a rapariga-estudante da Era Meiji à moga dos anos 20, passando pelas prostitutas pan pan no pós-guerra e subculturas kogyaro, ganguro e yamamba na década de 90 e anos 2000, é claro como numa certa linhagem de shoujo se têm interlaçado (e negociado) tensões e ansiedades complexas em relação aos papéis de género, à raça, à classe e à decadência moral de sucessivas gerações de jovens no Japão moderno e pós-moderno.

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BIBLIOGRAFIA

Azuma, Hiroki. 2009. Otaku: Japan’s Database Animals. Minneapolis: University of Minnesota Press.

Kinsella, Sharon. 2005. “Black faces, witches and racism agaisnt girls“. In Bad Girls of Japan, edited by Laura Miller, and Jan Bardsley, 143-158. Nova Iorque: Palgrave Macmillan.

Marx, W. David. 2012. “The History of Gyaru.” Néojaponisme. Acedido18 Janeiro, 2015.

Williams, Olivia.”Gyaru.” Anomalynn. Acedido18 Janeiro, 2015.

Gyaru Wiki. Acedido18 Janeiro, 2015. http://gyaru.wikia.com/wiki/Main_Page

Girls gone wild, west and black (Parte II)

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Modelos kogyaru (ou kogal) a posar numa revista.

Na primeira parte deste post, tracei uma genealogia da equivalência entre delinquência sexual e delinquência racial na raiz do conceito moderno de shoujo (“jovem rapariga”), desde a school girl da Era Meiji, passando pelas moga (“modern girl”) nas décadas de 20 e 30, até às prostitutas panpan no pós-guerra. Agora, fazemos fast forward para a progenitura mais espampanante e kawaii desta linhagem: as gyaru (transliteração japonesa do inglês “gal”) e os pânicos morais que estas meninas com microssaias e muitas horas de solário suscitaram durante os anos 90s e early noughties.

O gyaru é uma das subculturas femininas mais persistentes do Japão contemporâneo. Ao contrário da maior estabilidade estilística de outras street fashions duradoras (como o Lolita), esta longevidade deve-se em grande parte à sua heterogeneidade e capacidade de reinventar-se em intermináveis (e, muitas vezes, efémeras) subcategorias – afectando looks que vão desde a high schooler dropout à bimba californiana on steroids, passando pela diva hip hop às hostesses dos clubes nocturnos japoneses. Em comum, mantêm-se uma certa qualidade de delinquência posh e slutiness ocidentalizada (por vezes elevada ao ponto da paródia), as shopping sprees nos grandes armazéns de Shibuya e, em geral, uma vibe de party girl descontrolada que, para o bem e para o mal, está nos antípodas da Yamato nadeshiko (a personificação normativa da “rapariga japonesa ideal’). Mas, afinal, quem são e de onde vêm estas moças?

GGW_1Duas kogyaru numa rua de Shibuya.

O termo “gal” entra no jargão nipónico ainda nos anos 70, mas é nos anos 80, em plena bubble economy, que a subcultura começou a ganhar forma em torno de revistas cor-de-rosa trashy para adolescentes e jovens office ladies interessadas em moda, roupa justa (chamada bodicon, de “body conscious”), idas a boates – em particular, a mítica Juliana’s Tokyo, conhecida pelas plataformas descomunais das suas go-go dancers – e, last but not least, rapazes (não por acaso, um slogan icónico da primeira geração gyaru era “I can’t leave without men”). Ou seja, comparadas com o cânone de feminilidade japonês altamente espartilhado pela obediência ao protocolo e os papéis de género tradicionais, o gal representava uma nova estirpe de raparigas mais sexualmente agressivas e, ao mesmo tempo, easygoing e despretensiosas. À primeira vista, a coisa pode parecer ter pouco de “revolucionário”; mas o facto do parlamento japonês ter caído com mão de ferro em cima das revistas femininas associadas ao lifestyle das gals (levando a que muitas delas fossem descontinuadas em meados dos anos 80), é bem indicativo de como este tipo de comportamentos licenciosos não eram bem-vindos pelo controlo patriarcal.

GGW_2Capa da revista feminina Gals Life (anos 80).

Mais do que qualquer outra coisa, porém, o nascimento do gyaru enquanto street fashion é inseparável do emergir de Shibuya como hotspot da cultura jovem e nocturna de Tóquio, na ressaca da bolha das designer clothes conceptuais e avant-garde que dominavam a cena de Harajuku no final dos anos 80 (liderada por marcas como a Comme des Garçons e a Y’s). Nomeadamente, o gyaru ligou-se à popularização do estilo shibukaji (“shibuya casual”), inspirado na cultura preppy norte-americana e caracterizado por uma fartura de jeans, polos e (entre os miúdos mais endinheirados) acessórios de marcas como a Chanel ou a Louis Vuitton – usados com uma nonchalance de quem não quer a coisa.

GGW_3Vista nocturna do bairro de Shibuya.

GGW_4Exemplos do estilo shibukaji (anos 80).

Este estilo “casual” acabou por ser adoptado pelos chamados chiimaa (de “teamers”), miúdos ricos malcomportados que, em vez de estudarem, se dedicavam a organizar festas underground em Shibuya, comer fast food e andar às voltas de carro a engatar miúdas. Contudo, em 1991-92, uma série de lutas territoriais violentas entre gangs rivais de chiimaa (que resultaram na morte de um estudante universitário e de um sem-abrigo) puseram as forças policiais em alerta e condenaram esta passageira e mal-afamada subcultura, dominada por rapazes, ao desaparecimento. Ao contrário, foram as raparigas que se moviam nos círculos dos chiimaa, onde até então ocupavam um papel secundário – as chamadas paragyaru (“paradise gals”), por cultivarem um visual bronzeado à la beach girl de Los Angeles –, que sobreviveram para desenvolver aquele que se tornou um dos estilos mais icónicos da street fashion japonesa dos anos 90: as kogyaru (‘ko’ é um sufixo que indica ‘pequeno’ou ‘criança’). É neste sentido que se pode dizer que “as primeiras kogyaru de Shibuya eram, essencialmente, as namoradas dos chiimaa” (Marx 2012).

GGW_5Bando de chiima (ou teamers).

GGW_6Exemplos do estilo paragyaru (início dos anos 90).

O kogyaru começou por ser um estilo usado por high schoolers rebeldes de liceus “bem,” que em vez de querem parecer mais velhas (como a anterior geração gyaru) exibiam orgulhosamente os seus uniformes escolares modificados usando-os, inclusivamente, ao fim de semana – uma tendência conhecida como “seifuku pride,” também resultado do movimento de Identidade Escolar (circa 1987), que levou a que muitas escolas contratassem designers profissionais para reformular os uniformes antiquados, dando-lhes uma aura mais moderna (por exemplo, introduzindo o blazer para raparigas). O novo visual teve o seu pico entre 1993 e 1998 e captou a atenção mediática com as suas minissaias plissadas descaradamente curtas, penny loafers, pele bronzeada e o cabelo pintado de castanho claro ou arruivado (o chamado “chapatsu”).

GGW_8Características do estilo kogyaru.

Entre os acessórios preferidos das kogyaru, estavam pagers e telemóveis primitivos que mitigavam o controlo parental, assim como as emblemáticas loose socks: um tipo de meias brancas, espessas e largas como perneiras (originalmente de montanhismo e importadas dos Estados Unidos), que as raparigas esticavam, alargavam e colavam abaixo do joelho com uma fita adesiva chamada sock glue. No auge da sua popularidade, surgiram variantes como as super loose e gom nuki loose, chegando algumas a ter mais de dois metros de comprimento.

GGW_7Exemplo de loose socks.

Rapidamente entraram em circulação trocadilhos depreciativos como “loose socks ou loose sex?, e por todo o lado corriam relatos de homens mais velhos que compravam a companhia (e, eventualmente, os favores sexuais) de colegiais de classe média e alta a troco de dinheiro ou géneros, como roupa de marca e produtos de luxo – epitomando, assim, a imagem de uma clique de raparigas adolescentes aborrecidas, materialistas e destituídas de qualquer fibra moral, utilizando os próprios corpos como mercadoria transacionável. O fenómeno, que ficou conhecido por enjo kousai (“compensated dating”), transformou-se no pânico moral da década, alimentado pelos jornais sensacionalistas e conservadores ao mesmo tempo que, nas revistas masculinas, as kogyaru eram romantizadas como fantasia sexual número um do homem japonês contemporâneo.

GGW_9Publicidade a “sexy dating” num telefone público.

Esta power play – em que duas faces da mesma agenda ideológica repressiva tratam de “sexualizar raparigas adolescentes e depois castigá-las por agirem sobre essa sexualidade” (Shamoon 2012, 28) – não é nova; na verdade, é traçável até à school girl da Era Meiji, surgindo como tema central em clássicos da literatura japonesa moderna como Futon (1907) de Katai Tayama. E apesar de, em retrospectiva, os estudos indicarem que o enjo kousai como prática disseminada entre as kogyaru será pouco mais do que um mito urbano (as raparigas parecem, de facto, ter começado a fazer mais sexo mais cedo, mas com os seus namorados e não a prostituírem-se), isso não impediu que tivessem de lidar com o crescente assédio de salaryman que se deslocavam às ruas de Shibuya à espera de sexo. Como reação, muitas kogyaru adoptaram um jargão macho e uma postura intimidante que afastava os pretendentes indesejados e teve um impacto decisivo nas gyaru dos anos 2000.

GGW_10Imagens associadas à prática de enjo kousai.

Na cultura popular, a magnum opus do kogyaru é Love & Pop (1998), o primeiro filme live action de Hideaki Anno, mais conhecido como o cérebro por trás de Neon Genesis Evangelion (1995-96, uma das mais populares, aclamadas e estudas obras de animação japonesa).

GGW_11Imagem promocional de Love & Pop (1998).

Adaptado de um romance de Ryuu Murakami, a história é narrada por Hiromi Yoshii (Asumi Miwa), school girl de uma família normal de classe média, que, juntamente com o seu grupo de BFFs, pratica enjo kousai para ganhar uns trocos. A vida corre-lhe sem problemas de maior – mais do que os salaryman lascivos que as abordam, preocupam-na o futuro depois do liceu e a relação com as suas amigas –; até que um dia, por causa de um anel demasiado caro, Hiromi perde o controlo e acaba por descer ao submundo mais perturbador e perigoso do “compensated dating.

É certo que Love & Pop tem os seus momentos de fábula admoestatória, mas Anno (que conhece demasiado bem, ele próprio, os meandros da depressão) sabe melhor do que ser condescendente com as suas heroínas, representadas, apesar das suas manias e inseguranças, como miúdas intelectual e emocionalmente inteligentes – ao contrário dos homens que as rodeiam, todos eles de alguma forma patéticos e/ou uns grandes weirdos. Acima de tudo, Love & Pop é toda uma fenomenologia do kogyaru, fazendo uso pioneiro de câmaras de mão digitais para captar as raparigas enquanto sensação crua. Desde a cena inicial, em que vemos de um ponto de vista subaquático a silhueta de Hiromi em uniforme a flutuar na água, obscurecida pela contraluz de um sol alaranjado (poderia ser um mar de LCL como o de Evangelion, “um mundo em que existes em todo o lado, e como tal em lado nenhum”); passando pelo motivo recorrente das unhas impecavelmente arranjadas, alongadas e distorcidas por lentes olho de peixe – inclusivamente, o fascínio de Hiromi perante a visão abjecta da sua mão coberta pelo esperma de um “cliente” nojento; até à icónica cena final, um travelling longíssimo em que as raparigas caminham incansáveis lado a lado, em direção à câmara, ao longo de um canal alagado e ladeado de betão e prédios.

GGW_12GGW_13GGW_14Corporalidade das kogyaru em Love & Pop.

Logo no início, Anno consegue até o prodígio de fazer uma panchira ou panty-shot invertida, em que em vez de vermos as cuequinhas de Hiromi como seria habitual, vemos o ponto de vista das cuequinhas em si: de entre as pernas para o chão. Esta inversão deliciosamente irónica – porque é tanto o culminar do voyeurismo subjacente ao plano da panty-shot (estar na própria cueca), como seu anulamento final (uma vez que a cueca deixa de ser visível) – é, aliás, uma característica que atravessa Love & Pop: a proximidade radical ao corpo enquanto sujeito (animado) mais do que objecto (inanimado). Apesar de existir, sem dúvida, uma componente fetichista nesta aproximação, as gyaru (e mundo por elas habitado) são representadas enquanto matéria e sensação bruta, mudando a perspectiva pela qual os seus corpos são habitualmente olhados (de fora, como imagem desencarnada, realidade com a qual Hiromi e as amigas constantemente se deparam ao longo do filme) para reclamá-los enquanto presença irredutível que resiste a qualquer reificação.

GGW_15Panty-shot invertida de em Love & Pop.

Pelo meio, há ainda momentos bunuelianos dignos de um Belle de Jour; como a sequência em que, no final de um “date” com um salaryman inconspícuo, Hiromi e as amigas acabam numa sala de karaoke a mastigar uvas Moscatel que, depois de metodicamente colocadas em placas de Petri, serão vendidas a cavalheiros por quantias elevadas (um piscar de olho às chamadas burusera, lojas onde se vendem itens usados por estudantes de liceus, desde uniformes escolares e roupa interior, a pensos higiénicos e tampões, ou mesmo saliva, urina e fezes).

GGW_16Hiromi coloca na boca a respectiva uva Moscatel.

Anno não foi o único a aperceber-se das virtudes estéticas e políticas das kogyaru. Outros artistas usaram-nas como imagem de resistência (ou ataque) ao status quo, por exemplo, animações de Tabaimo como Japanese Zebra Crossing (2000), em que uma colegial defeca sobre a Hinomaru (bandeira nacional japonesa), ou  Harakiri School Girls de Makoto Aida, um admirador confesso da subcultura gyaro.

GGW_17Harakiri School Girls (1999) de Makoto Aida.

Concebido como poster para a primeira exposição individual de Aida (depois transformado em pintura para a Bienal de Singapura de 2006), Harakiri School Girls retrata com a elegância decorativa das ukiyo-e aquilo que poderia ser uma cena de slasher film, com a respectiva abundância de violência gráfica e gore. Harakiri School Girls é um palco de suicídio colectivo, em que um grupo de gyaru bronzeadas, de cabelos pintados com madeixas loiras e ruivas e loose socks, se evisceram e decapitam com catanas de samurai, entre bilhetes de karaoke e lenços de papel usados. No cenário, há ainda um arco-íris (reflexo da luz no jacto de sangue que irrompe de um pescoço) e até um gatinho, que espreita curioso. Os intestinos que percorrem a imagem como serpentinas, o sangue que jorra luxuriante das entranhas, e os sorrisos arrebatados de êxtase dão à cena um sentimento festivo, pop, psicadélico. As school girls de Aida são menos psicológicas e ambíguas do que as de Anno, e talvez por isso a mensagem é aqui mais clara: disruptivas, iconoclastas, deleitando-se “na mortalidade como negação de tudo aquilo que se define, moralisticamente, como pró-vida” (Edelman 2004, 33).

GGW_18Detalhe de Harakiri School Girls.

Na próxima parte: as “caras negras” e “bruxas” tomam o controlo em Shibuya!

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BIBLIOGRAFIA

Ashcraft, Brian e Ueda, Shoko. 2013. Japanese Schoolgirl Confidential: How Teenage Girls Made a Nation Cool. Nova Iorque: Kodansha USA.

Edelman, Lee. 2004. No Future: Queer Theory and the Death Drive. Durham (NC, USA): Duke University Press.

Kinsella, Sharon. 2005. “Black faces, witches and racism“. In Bad Girls of Japan, edited by  Laura Miller, and Jan Bardsley, 143-158. Nova Iorque: Palgrave Macmillan.

Lara. 2012. “Gyaru, uma história.” Galaxy 109. Acedido 2 Dezembro, 2014.

Marx, W. David. 2012. “The Japanese Diet vs. Popteen.” Néojaponisme.  Acedido 2 Dezembro, 2014.

Marx, W. David. 2012. “The History of Gyaru.” Néojaponisme.  Acedido 2 Dezembro, 2014.

Shamoon, Deborah. 2012. Passionate Friendship: The Aesthetics of Girl’s Culture in Japan. Honolulu: University of Hawaiʻi Press.

Girls gone wild, west and black (Parte I)

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School girl da Era Meiji.

Na origem dos muitos girl panics que pontuam a modernidade (e pós-modernidade) japonesa, a shoujo (“jovem rapariga”) surge enquanto categoria cultural na esteira do acelerado processo de modernização que se precipitou após a Restauração Meiji (1868). É, nomeadamente, o resultado do emergir de um sistema organizado de educação secundária para raparigas, inspirado nos modelos ocidentais. Desde cedo, a sua figura confunde-se com a da school girl (“joshi gakusei” ou “jogakusei”) e encarna, de forma ímpar, os mixed feelings (do fascínio ao temor) suscitados pelo admirável mundo novo que se deixava entrever nas últimas décadas do século XIX. Pois se, por um lado, as filhas da nova média e alta burguesia urbana personificavam um Japão que deixava para trás o isolacionismo feudal para abraçar valores modernos importados do Ocidente, por outro, esta ocidentalização no feminino (dos corpos que deviam ser o reservatório nacional de pureza étnica e, em última análise, assegurar a sua reprodução biológica) é, por assim dizer, o “pecado original” da shoujo. O concomitante ideal ryousai kenbo (“boa esposa, mãe sensata”) – que moldou decisivamente os paradigmas de feminilidade no Japão desde o final do século XIX até à contemporaneidade – serviu, em certa medida, para equilibrar os pesos na balança da emancipação feminina: a mulher japonesa moderna devia ser culta e educada, sim, mas apenas na medida em que tal lhe permitisse desempenhar, dentro da esfera doméstica, o seu papel como companheira (à altura) do homem japonês moderno (ou seja, uma “esposa culta, mãe educada,” obedecendo a ideais de castidade física e espiritual muito diferentes da promiscuidade licenciosa da “velha” geisha da Período Edo).

 

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O típico uniforme da jogakusei da Era Meiji: hakama redesenhada para enfatizar o aspecto de saia (mas permitindo às raparigas movimentarem-se publicamente de bicicleta sem expor demasiado as pernas), penteado no novo estilo Maagareto (solto pelos ombros e apanhado atrás com um laço) e sapatos ocidentais

Ironicamente, ao abrir-se, no sopé da modernidade, esse intervalo entre a criança e a esposa que é a adolescência, a school girl da Era Meiji – visivelmente ocidentalizada no trajar e nos valores cristãos e individualistas assimilados da Europa e Estados Unidos –, acabou mesmo por inaugurar toda uma linhagem de pânicos e “reações esquizofrénicas” (Copeland 2006, 9) por parte do público face a miúdas adolescentes “fora de controlo.” Demasiada independência abalava o rédea patriarcal, as roupas ocidentais insinuavam frivolidade e sassiness, e a sua força magnética sobre o male gaze não a tornava apenas sexualmente desejável, mas sugestionava precocidade sexual. Não é por acaso que clássicos da literatura Meiji como Ukigumo (1887, considerado o primeiro romance moderno japonês), Yabu no uguisu (1888) ou Futon (1907), têm at heart esse pânico moral que a shoujo suscitava. No imaginário Meiji, a shoujo torna-se potencialmente fatale, um Outro fascinante mas disruptivo que ameaça a unidade familiar e, em última instância, a própria integridade da nação (e da raça) japonesa.

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Ukiyo-e de school girls da Era Meiji pelo artista Shodo Yukawa, da série 100 Belezas Representando Maneiras e Costumes Modernos e Antigos (1903).

Esta equivalência entre delinquência sexual e delinquência racial na raiz da shoujo é uma caixa de Pandora que alimentará tensões e ansiedades complexas face ao empowerment cultural, económico e social de raparigas ao longo do século XX e XXI. Das modern girls nos anos 20, às prostitutas panpan no pós-guerra, à subcultura gyaro na década de 90 e anos 2000, todas levantaram suspeitas (e terrores) sobre a sua higidez sexual, insinuando-se que estas raparigas, contaminadas pela decadência material e espiritual do Ocidente, não eram (não poderiam ser) “devidamente” japonesas.

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Moga, as modern girls” dos anos 20  nas ruas de Tóquio.

Um momento seminal nesta genealogia é a modern girl ou moga (abreviatura de “modan gaaru”) nos anos 20 e 30, uma espécie de equivalente nipónico das flappers norte-americanas ou das garçonnes francesas. Com os seus bob cuts e roupas modernas à imagem das actrizes de Hollywood (estávamos, nos anos 20, em pleno boom dos cinemas nas grandes metrópoles japonesas como Tóquio, com estrelas como Clara Bow, Pola Negri, Mary Pickford e Gloria Swanson a tornarem-se populares entre as jovens japonesas), as moga representavam uma nova estirpe de raparigas financeiramente autossuficientes, sexualmente desoprimidas e prontas a participar no “hedonismo cultural”(Sato 2003, 73) da emergente sociedade de consumo globalizada.

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Estampa de uma moga na exposição Deco Japan: Shaping Art and Culture, 1920–1945.

Apesar de traduzir uma parcela relativamente reduzida, amorfa e sem voz da população feminina, a moga foi intensamente escrutinada e discutida na praça pública e mediática como símbolo de um zeitgeist moderno que desafiava os papéis de género tradicionais. Esta sua dimensão icónica e abstracta prestou-se a interpretações (e instrumentalizações) diversas por parte de sectores que, por razões muito diferentes, se estenderam desde os conservadores nacionalistas ao feminismo marxista. E se, para alguns comentadores, a moga era uma novidade entusiasmante no sentido da participação mais activa da mulher na sociedade, para os mais cépticos, revelou-se uma evolução decepcionante da “novas mulheres” da Era Meiji, perdendo o edge intelectual em prol do style over substance. De facto, com poucas excepções, predominou uma imagem da moga como fashion victim frívola, manipuladora e moralmente decadente, que se limitava a copiar revistas femininas de grande circulação e filmes americanos, desde as roupas e penteados ao lifestyle libertino influenciado pelas cenas de amor que pululavam nas películas importadas.

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Caricatura de uma moga, 1928.

Implícita em muitas destas acusações estava ainda a ideia de que as moga não só acabariam certamente por ter sexo casual com homens estrangeiros (ou, no mínimo,  com hooligans e ladykillers), como arruinariam qualquer homem japonês de bem que se deixasse enfeitiçar pelo seu charme exótico. Na literatura, Chijin no Ai (1924, também conhecido pela tradução inglesa, Naomi) é a obra que imortalizou o “pânico modern girl“; mas nos media sensacionalistas correram relatos frequentes e espetaculares de rixas e sex scandals envolvendo gaijin com raparigas fácies de penteados curtos e roupa ocidental pelas ruas de Tóquio e Yokohama.

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Capa da 1ª edição de Chijin no Ai.

A ligação mais concreta entre a moga e a working class girl surge apenas no final dos anos 20 e início da década de 30, quando é o foco de uma nova vaga de ansiedade: o boom da chamada “civilização do café” (Bruce 2006, 7) e o emergir da criada de mesa e outras “girls” como ex-líbris sexuais da moderna movida urbana.

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“Cliente apaixonado bebe demasiado café e cobiça a anfitriã do estabelecimento,” uma caricatura de 1920.

Depois do Grande Sismo de Kantou em 1923, que destruiu Yokohama e devastou as prefeituras vizinhas de Chiba, Kanagawa, Shizuoka e Tóquio – somando-se ao já tumultuoso período do pós-Primeira Guerra Mundial –, o distrito de Ginza (em Tóquio) tornou-se o berço de uma nova cultura literária e de consumo, com as suas department stores, cafés, dance halls, boutiques e influxo de modern boys e, particularmente, modern girls procurando emprego nessa época de precariedade decorrente do terramoto. O resultado foi o emergir de uma classe inédita de pink-collar workers em empregos relacionados com serviços, entretenimento e atendimento ao público; estes, ao contrário das trabalhadoras de colarinho azul nas fábricas, capitalizando no sex appeal das raparigas, que passavam o dia inteiro a interagir com o sexo oposto nas lojas, escritórios e transportes onde trabalhavam. Para além do aumento exponencial de empregadas de café, multiplicaram-se ocupações como a bus girl, a department/shopping girl, a mannequin girl, a elevator girl, a one-yen taxi girl, a gasolin girl, a mah-jong girl, a cinema girl ou a office lady.

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Elevator girl e streetcar gil nos anos 20 e 30.

Apesar de, na prática, todas estas profissões explorarem a mulher enquanto objecto sexual essencialmente passivo, estas raparigas de classe-média – que recebiam gorjetas, conversavam com homens e, no caso das empregadas de mesa, eram incentivadas a ser abertamente flirty – projectavam uma imagem inegavelmente erótica, perturbando a ordem sexual e moral instalada que ditava que o seu lugar era em casa e ao serviço da família (com as prostitutas a servirem de “isolante” entre o recato do lar e mundo interdito dos prazeres carnais, reservado aos homens). Para a sociedade em geral, só palavras estrageiras, como a omnipresente “girl” (“gaaru”), conseguiam captar esta aura moderna e risqué que parecia extremamente não-japonesa. Na modern girl, a shoujo ganhou assim uma dimensão icónica e duradoura em que o consumo conspícuo e empoderamento económico das raparigas se ligam à promiscuidade sexual e, em última análise, à corrupção dos valores japoneses pela inexorável ocidentalização do Japão moderno.

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Par de panpan (ou prostitutas adolescentes amadoras), 1948.

Já no rescaldo da 2ª Guerra Mundial, esta dimensão da shoujo regressa com as panpan, um termo derrogatório para prostitutas de rua que serviam as forças aliadas (em particular, os miliares americanos) durante o período da Ocupação (1945-1952). Para as autoridades japonesas, era um dado adquirido que a logística da Ocupação implicava acomodar as necessidades sexuais de todo um exército estrageiro, incluindo soldados afro-americanos considerados, aos olhos do “racismo científico” popular entre uma certa intelligentsia desde a Era Meiji (importado das teorias eugénicas euro-americanas), uma raça sub-humana com comportamentos antissociais. To be sure, apenas três dias depois do Japão se render aos Aliados, o Ministério do Interior encarregou secretamente inúmeros polícias por todo o país de preparar instalações especiais de “alívio,” providenciando prostitutas para que os ocupadores não procurassem raparigas japonesas “normais.” Apesar do governo nipónico rapidamente se desvincular destas ligações oficiais à prostituição de mulheres, oficiosamente, a prioridade imediata era proteger a castidade das futuras mães japonesas; mesmo se, para isso, fosse preciso sacrificar um stock de voluntárias dispostas a servir de muralha entre o puro-sangue e a ameaça da miscigenação racial. Ironicamente, esse stock acabou por ser composto menos por prostitutas profissionais do que pelas mesmas raparigas de classe média destroçada pela guerra que era suposto serem protegidas (daí o termo “prostitutas adolescentes amadoras,” pelo qual as panpan também ficaram conhecidas), aliciadas quer pela remuneração como pela propaganda que incentivava “novas mulheres japonesas” a darem o corpo pelo nação. Ou, como confessavam algumas, “simplesmente por curiosidade” (Dower 1999, 134).

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Confraternização entre panpan e GIs.

Neste sentido, as panpan “resistem a ser reduzidas a sinais puros de ‘vítima’ ou ‘sacrifício,’ dado que encarnam articulações complexas de desejo inter-racial, ambição material e oportunismo, assim como vitimização” (Sakamoto 2010, 2). Com efeito, fruto da confraternização próxima com o “inimigo,” as panpan não só tinham acesso a luxos e delicatessen com que as restantes mulheres japonesas apenas podiam sonhar (maquilhagem, meias de nylon, cigarros Lucky Strike), como muitas gastavam os seus rendimentos em extravagâncias e prazeres efémeros, suscitando sentimentos mistos de perplexidade, admiração, inveja e repulsa por parte da vox populi. No imaginário do pós-guerra, o arquétipo da panpan era o da diva decadente de lábios vermelhos, sapatos de salto alto e braço dado com GIs altos e espadaúdos em uniforme, destilando glamour hollywoodesco, falando inglês (macarrónico, apeliado humoristicamente de “panglish“) e ostentando uma sexualidade irreprimida que transcendia “preconceitos raciais e internacionais” (Dower 1999, 133).

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Fotografia clássica de uma panpan em Tóquio, de Jun Yoshida.

Acima de tudo, as panpan foram um símbolo ambivalente: por um lado, o reminder constante da emasculação dos homens japoneses perante a potência (militar e sexual) dos colonizadores (um sentimento de humilhação e vergonha que, nas representações literárias das panpan, é essencialmente uma construção dos sujeitos masculinos); por outro, a face desejável – mesmo se oportunista e minada pela violência sexual sobre mulheres que continuamente acompanha o militarismo e a guerra – de um Japão reinventado à imagem das (materialmente confortáveis) democracias ocidentais.

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Caricatura de um GI e uma panpan passando por um veterano de guerra japonês enquanto passeiam alegremente.

Na próxima parte: colegiais com minissaia e muitas horas de solário fazem das suas em Shibuya!

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BIBLIOGRAFIA

Bruce, Lauren C. 2006. “Girls Just Want To Have Fun: American and Japanese Evaluations of the Japanese Moga During the Interwar Years.” Trabalho académico para seminário sénior, University of Washington.

Copeland, Rebecca. 2006. “Fashioning the Feminine: Images of the Modern Girl Student in Meiji Japan.US-Japan Women’s Journal 30-31: 4-25.

Dower, John W. 1999. Embracing Defeat: Japan in the Wake of World War II. Nova Iorque: W. W. Norton & Company.

Gordon, Andrew. 2008. A Modern History of Japan: From Tokugawa Times to the Present. Oxford: Oxford University Press.

Griffiths, Natasha, e Flores, Linda. 2008. S.t.

Sakamoto, Rumi. 2010. “Pan-pan Girls: Humiliating Liberation in Postwar Japanese.” Portal Journal of Multidisciplinary International Studies 7, nº 2.

Sato, Barbara. 2003. The New Japanese Woman: Modernity, Media, and Women in Interwar Japan. Durham, Carolina do Norte: Duke University Press, 2003.

Shamoon, Deborah. 2012. Passionate Friendship: The Aesthetics of Girl’s Culture in Japan. Honolulu: University of Hawaiʻi Press.

Retrato da artista enquanto jovem hamster (e outros becoming-pet)

hamster_1_bThe Reason Why I Became a Hamster, da artista japonesa Sako Kojima.

1.

Há uns anos atrás – ainda na “era LiveJournal” –, cruzei-me no saudoso Click Opera com The Reason Why I Became a Hamster, uma performance da artista japonesa Sako Kojima apresentada pela primeira vez em Osaka nos early noughties (e entretanto repetida mais umas vezes, incluindo em solo francês por ocasião de Lille 2004, Capital Europeia da Cultura, e em Berlim, para a colectiva The Echo, em 2012). Nesta, Kojima (então na casa dos 20 e tal anos) vestiu-se de hamster e viveu durante uma semana na montra de uma galeria, a comer sementes de girassol gigantes, moder madeira, arranhar paredes e, em geral, a ser o mais “hamsteresca” que uma miúda em cosplay de roedor felpudo consegue ser.

Foi provavelmente a coisa mais fofinha que vi na década passada.

Sako Kojima na Maison Folie Wazemmes, em Lille, 2004. Os danos colaterais da performance incluem músculos doridos por todo o corpo (“movimentos rápidos são muito difíceis e cansativos para um hamster à escala humana,” assegura Kojima) e um dente da frente partido (não desejo isso a ninguém).

Claro que, como tudo o que é kawaii no Japão, há algo de errado a acontecer por trás daquilo que à primeira vista parece queriduxo. Por isso não fiquei muito surpreendida quando, mais recentemente, soube que a performance resultou de um período de depressão da artista. “Passei o Verão de 2002 dentro de casa e sozinha,” diz Kojima em entrevista à Vice, “a minha vida era vazia. A única coisa que fazia era ir ao supermercado mais próximo comprar uma refeição simples e depois voltar para casa e dormir.” E conclui: “Para mim, tornar-me um hamster é um símbolo de como a vida na nossa actual sociedade estandardizada é segura e somos poupados à fome, mas não vivemos.”

hamster_2_grupoMomentos na “hamsterhood” de Sako Kojima.

Nas palavras de Momus, músico e blogger e cérebro do Click Opera, Kojima tirou umas holidays from being human; mas basta uma leitura na diagonal pela secção dos comentários para perceber que a solução não convence os mais cépticos. “Que tal, ‘durante três anos vivi na floresta a fazer de raposa. Ninguém viu o que eu fiz.’ Não deve fugir-se de ser humano ser, também, uma fuga da arte?” questiona um comentário. O sentimento de animosidade em relação ao pet – ao contrário da raposa, o hamster não é levado a sério como representante da animalidade – é algo que Steve Backer, em The Postmodern Animal (2000), identifica como o (persistente) estatuto problemático do animal de estimação na crítica contemporânea. Basta lembrar que Deleuze e Guattari chamam idiota a qualquer pessoa que goste de cães ou gatos.

Backer sugere que, ao contrário do expectável – tendo em conta que a dissolução de categorias seria, em princípio, cara ao zeitgeist pós-moderno – o animal de estimação é indeferido por constituir uma ameaça à própria autoimagem do artista:

O que alimenta a força do sentimento pós-moderno contra o animal de estimação? Talvez, em parte, o facto de que apesar dos artistas quererem que a arte seja selvagem, esta normalmente não o é. (1)

Com efeito, quando questionada sobre a sua escolha de animal (“porque não um gatinho?” perguntam-lhe), é o binómio selvagem/doméstico que Kojima evoca: “Gosto de hamsters porque são fracos e ferozes ao mesmo tempo e têm uma abordagem fria e impassível aos humanos. Não se pode realmente domesticá-los.” Esta insistência na essência silvestre do hamster pode até parecer forçada, mas levanta uma hipótese interessante: na medida em que é um pet “falhado” – fofo mas fraco, pouco inteligente, pobre em skills sociais e, em geral, sem o street cred de outros mamíferos de companhia como cães e gatos–, o hamster expõe a dimensão mais abjecta (e tabu) do animal de estimação enquanto criatura aberrante.

Curiosamente, entre os comentários no Click Opera, a cuteness “estúpida” de Kojima-enquanto-hamster – “mindless” é a palavra utilizada – surge associada ao estereótipo da rapariga japonesa, quinta-essencialmente cute e submissa (não há dúvida de que o triângulo rapariga/criança/pequenos animais é uma santíssima trindade do “kawaii-verse”). As implicações incómodas de impotência e abuso do poder despoletadas pela performance de Kojima culminam na sobreposição fantasmática da imagem da pet shop sobre o espaço da galeria, uma semelhança uncanny que se estende desde os displays transparentes  aos olhares voyeuristas de potenciais consumidores.

hamster_4_bA galeria como pet shop.

Assim, The Reason Why I Became a Hamster parece insinuar que, se é verdade que “uma vez dentro do espaço triste e seguro da galeria, nem o tubarão-tigre preservado de Hirst, nem o coiote vivo de Beuys, podem transportar o peso integral do seu estado selvagem” (2), então a “hamsterficação” poderá ser o destino último do artista (como da rapariga cute ou, neste caso, ambos).

2.

De resto, é um facto que o pet anda de mãos dadas com a cuteness na arte contemporânea japonesa, precisamente pela sua natureza unheimlich, familiar mas inquietante: um animal comoditizado que corrobora o humano, perturbando a oposição binária sujeito/objecto, eu/não-eu. Exemplos não faltam, porém as pinturas de Yuko Murata ocorrem-me como um caso particularmente curioso.

hamster_5Oh não! Mais hamsters D: … Ou talvez seja um esquilo.

Nestas pequenas telas, pintadas a partir de fotografias anónimas de enciclopédias ou brochuras turísticas recolhidas no metropolitano da megatrópole de Tóquio, Murata dá forma a um “mundo flutuante” de paisagens serenas e distantes (Islândia, Austrália, Arizona), povoadas por veados pachorrentos, ovelhas dóceis, esquilos patetas, morcegos graciosos e pássaros tranquilos.

hamster_9_bhamster_6Exemplos de pinturas de animais e paisagens “selvagens” de Yuko Murata.

Fauna e flora são reconstituídas em cores suaves e planos de tinta lânguidos e cremosos – como fragmentos vagos de informação ou falsas memórias, sem origem no mundo real –, cuja portabilidade (são quase sempre pinturas a tender para o A4 ou A3, a óleo ou óleo solúvel em água) lhes dá uma escala doméstica e user-friendly. Paradoxalmente, o animal de estimação é referenciado através destes great outdoors , nostálgicos e amistosos, inteiramente “pet-ificados” pela retórica recreativa do turismo (e, como tal, não inteiramente “vivos”).

hamster_12Um simpático veado superflat.

Por último, não resisto a referir-me ao kemonomimi (literalmente, “orelhas de animal”), que é japonês para personagens de manga, anime ou videojogos às quais são acopladas orelhas, bigodes e/ou caudas de animais, com o objectivo de fazer disparar os seus níveis de cuteness. Ao contrário dos kemono (animais antropomórficos), nos kemonomimi, os caracteres animalescos são utilizados quase como acessórios de roupa ou cosplay – por exemplo, raparigas com orelhas de gato (nekomimi) ou coelho (usagimimi) –, não raras vezes complementados por indumentárias como o sailor suit, o french maid ou uniformes militares (para maximizar o efeito moé).

hamster_7Um exemplo de nekomimi (orelhas de gato) com uniformes de french maid ou meido.

O “dispositivo” do kemonomimi é de uso generalizado na cultura pop japonesa (como não!), mas uma das apropriações mais intrigantes que já vi dele fazerem foi em Loveless – o manga de fantasia de Yun Kouga, não o álbum dos My Bloody Valentine! Loveless é um battle manga shounen-ai sobre um miúdo chamado Ritsuka Aoyagi, passado num universo em que as crianças nascem com orelhas e caudas de gato. Até aqui tudo bem, mas há um twist: as orelhas caem quando os meninos e meninas perdem a virgindade, passando a partir desse momento a ser chamados “adultos.” Imaginem todo o potencial de awkwardness contido nesta premissa!

hamster_8Ritsuka, o protagonista de Loveless. Vamos não falar do facto de ele ter 12 anos. 

É verdade que a autora diz que introduziu este gimmick pela simples razão de querer desenhar catboys (o que é perfeitamente legítimo, digo eu), mas  a associação entre o animal de estimação e a inocência sexual que separa a criança do adulto é, mesmo assim, algo que ressoa profundamente com a lógica do kawaii. Mais ainda quando o controlo e a obediência,  o possuir e ser possuído, a dependência e o tabu são temas que atravessam esta série onde abundam referências à estética bondage. Porque se há coisa que não falta no Loveless são ligaduras, coleiras, correntes, presilhas, espartilhos de cabedal e, em geral, undertones eróticos de dominação e submissão.

Resumindo e baralhando, e dado que não posso deixar de fazer menção ao melhor amigo do homem num post sobre pets, deixo-vos com pinturas de duas dog series que não podiam ser mais diferentes: Paula Rego e as suas poderosas mulheres-cão de um lado, e os cruzamentos entre nihongaero guroidols do enfant terrible do Neo Pop japonês, Makoto Aida, do outro. NSFW!

hamster_10Dog Woman e Grooming, da série Dog Women (1994, pastel sobre tela) de Paula Rego.

Aida_dog_flower

makoto aida Dog_snow

Pinturas da Dog Series (1989 – presente) de Makoto Aida. Em cima: Dog (flower), 2003, pigmento mineral japonês e acrílico sobre papel japonês em painel, 107 x 66 cm. Em baixo: Dog (snow), 1998, pigmento mineral japonês, acrílico e colagem sobre papel japonês em painel, 73x 100 cm.

NOTAS:

(1) Steve Backer, The Postmodern Animal (Londres: Reaktion Books, 2000), 172.

(2) Ibid.