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Os estudantes (também) apoiam os estivadores

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O país dos falsos recibos verdes, dos contratos a termo e da precariedade generalizada é também o país das propinas, do acesso dificultado à bolsa de estudo e da mercantilização do ensino. Estes dois fenómenos não devem ser compreendidos em separado, mas integrados numa totalidade social. A crise estrutural do capitalismo abriu caminho a uma ofensiva contundente sobre todos os trabalhadores. Esta investida não só se traduziu em cortes salariais, em aumento do tempo do trabalho ou em despedimentos. Ela também se manifestou no modo como os grandes proprietários de capital tentaram e tentam a todo o momento liquidar as funções sociais do Estado. Neste processo de acumulação capitalista, a educação desempenha um papel muito importante. Ela é configurada pela classe social dominante – aquela que controla a economia de um país – no sentido de manter a ordem social e reproduzir a dominação dessa classe capitalista sobre aqueles que são explorados. Daí que exista uma constante tentativa de estruturá-la de acordo com os interesses dos bancos e de outros grandes grupos económicos e financeiros. Diríamos, com mais precisão, que a educação funciona como mediadora da integração social dos indivíduos, nomeadamente no trabalho. Não podemos, por isso, ficar surpreendidos quando nos apercebemos que as universidades – sendo que algumas já funcionam como autênticas empresas por via do regime de fundação privado – dificultam o acesso dos alunos ao ensino superior por força dos elevados custos, encerram cursos sob o pretexto de falta de empregabilidade ou moldam o conteúdo curricular de acordo com as necessidades do mercado. Os factores enunciados, acrescidos de uma banalização da licenciatura e de um desemprego massivo, proporcionam às empresas mão-de-obra pouco qualificada e qualificada que se encontra susceptível a realizar estágios não-remunerados ou a trabalhar sem direitos. Neste momento, o processo de precarização do trabalho encontra-se em fase de aceleração e tanto os estudantes como os estivadores constituem um alvo.

Face ao exposto, a luta dos estivadores é uma luta que diz também respeito aos estudantes. Os ataques dos operadores portuários sobre os estivadores, ainda que guardando especificidades, se articulam com o conjunto dos problemas que assolam os trabalhadores e estudantes em geral. Todos eles participam e se encontram envolvidos no actual momento histórico. Um mundo sem contratos colectivos de trabalho, onde o trabalho com direitos é substituído por vínculos laborais diversificados, baixos salários e turnos intermináveis mais não é que o mundo para o qual o sistema de ensino prepara os seus estudantes. O ênfase no indivíduo separado da sua dimensão social e alienado, que não consegue sequer vislumbrar para além dos seus interesses privados prepara a domesticação de futuros trabalhadores sem capacidade de participar colectivamente no que quer que seja. Os estudantes necessitam de criar organizações estudantis que transportem as suas lutas dos estabelecimentos de ensino até ao conjunto da sociedade. A polarização da luta de classes assim obriga; impele para uma tomada de partido. No passado e até recentemente, os estudantes já provaram que podem assumir-se como sujeito activo das lutas sociais participando ao lado dos trabalhadores. No dia 16 de Junho de 2016 pelas 18 horas estarão junto dos estivadores a percorrer o trajecto que vai do Cais do Sodré até S. Bento. Contra a precariedade e a exploração capitalista, passemos da teoria aos actos, das salas de aula à transformação social e dos livros à luta de classes!

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Rasguem-se os contratos de associação

A polémica em torno dos contratos de associação não é justificável. Diria mesmo que é inqualificável.  O bom senso, mesmo se considerarmos a alienação de boa parte dos elementos das classes trabalhadora e pequeno-burguesa, parece ditar que existe uma separação clara entre a esfera pública de actuação e aquela que deve ser de estrita responsabilidade dos agentes privados. A defesa dos lucros de uns poucos com o dinheiro dos impostos de quem trabalha só pode ser explicada pela mentira e pelo desespero da burguesia nacional no apogeu da crise. Neste sentido, exporei e  atacarei aqueles que são os fundamentos dos defensores do ensino privado subsidiado:

1. O ensino básico universal, obrigatório e gratuito em Portugal é uma conquista dos trabalhadores que ficou formalmente assinalada na Constituição da República Portuguesa.  Apesar de todas as revisões de que foi alvo manteve-se o objectivo de estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino. Contudo o período pós-revolucionário, e posterior ao 25 de Novembro, ditou uma alteração da correlação de forças que esmagou o projecto socialista assente na Lei Máxima. Na década de 1980 a educação já abria portas ao ensino privado financiado pelo Estado através dos contratos de associação. A justificativa prendia-se com a pouca abrangência da rede escolar, fruto da herança de desinvestimento salazarista. Este argumento não faz o menor sentido actualmente. Já existem inúmeras escolas públicas que se encontram sub-aproveitadas precisamente porque partilham a sua zona de abrangência com colégios privados financiados pelo erário público. Que o dinheiro contratualizado com esses colégios seja imediatamente canalizado para a requalificação e melhoria do ensino público. Os trabalhadores não têm de financiar o ensino em duplicado, ainda para mais quando atulham os bolsos dos proprietários de estabelecimentos de ensino cujos serviços nunca estarão disponíveis para os seus filhos;

2. O actual estádio de evolução do capitalismo é caracterizado pelos monopólios. Em período de crise este capital monopolista tende a socorrer-se do Estado no exercício de acumulação do capital e na destruição de toda a concorrência. O sector do ensino não é diferente. É um sector protegido que revela teias de relações entre responsáveis políticos e grupos económicos. Actualmente, 26 dos colégios abrangidos pelos contratos de associação pertencem à empresa GPS, que recebeu do Estado qualquer coisa como 52 milhões de euros em ano e meio. Esta mesma GPS que tem nos seus quadros ex-governantes do PS e do PSD. Além disso, é preciso não esquecer a presença importante da Igreja Católica neste sector. Por estas e por outras se explica que o leque de favorecimentos é extenso e qualificado. Com o governo de Passos Coelho e Nuno Crato foi criado o novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo que facilitou mais acordos com colégios mesmo onde existia oferta pública disponível. Em simultâneo negava autorização para a abertura de novas turmas no ensino público enquanto transferia alunos deste para colégios privados situados nas redondezas. Como se vê, não falamos de liberdade de escolha ou democracia no ensino. Falamos, isso sim, na transferência de rendimentos do trabalho para o capital por via do ensino;

3. As lágrimas de crocodilo que a direita e os donos dos colégios exibem sobre o possível despedimento de professores não condizem com o passado recente. O governo PSD/CDS pela mão de Nuno Crato procurou precarizar e colocar no desemprego um grande número de docentes do ensino público sob o pretexto da excessiva oferta para tão poucos novos alunos. Enquanto isso acontecia, assinava mais contratos de associação e criava mais turmas no privado. Quantos aos docentes dos colégios, as denúncias da exploração mais vil são incontáveis. Desde cargas horárias excessivas ao cumprimento de tarefas para as quais não foram contratados até ao constante assédio laboral;

4.  Mas este debate vai além do financiamento público do negócio privado. A educação pertence à superestrutura e é um veículo de transmissão da ideologia dominante com o propósito de consolidar a ordem social e reproduzir as relações sociais na formação económica e social em que vivemos. Neste âmbito, os colégios privados assumem um papel importante na forma como a sua estrutura fortemente hierarquizada impede qualquer tipo de organização mais política dos estudantes. Além disso, a competição é estimulada em detrimento da cooperação e o ensino prestado é vendido como mercadoria a que só podem aceder alguns. Os pais não investem na educação dos seus filhos porque são clientes que pagam por um serviço. A fetichização da mercadoria acaba por entranhar-se nas relações dentro da comunidade educativa. Não se formam pessoas dotadas de uma formação ecléctica e humanista, mas homo economicus; futuros profissionais perfeitamente adaptados e preparados para o mercado selvático.

Assim, resgatar a educação pública gratuita, universal e de qualidade deve estender-se a todos os graus de ensino e pressupõe um conjunto variado de acções no âmbito de uma luta mais ampla. Mas o fim dos contratos de associação dos colégios privados é um bom princípio. Contra a mercantilização e monopolização do ensino privado, pelo emprego com direitos de todos os docentes e pela necessidade das crianças terem contacto com outras realidades e outros ângulos de opinião; enfim, serem ensinadas num ambiente mais democrático sob todos os pontos de vista.

Não é de agora. Henrique Raposo sobre raça e genética

A série de disparates proferida por Henrique Raposo não começou no Algarve e muito menos no Alentejo. Em 2014, o cronista escreveu uma pedaço de texto sobre raça e genética. Mais uma piscina para o menino Henrique mergulhar sem qualquer rigor científico. Todavia, a água em que se banhava estava toda mijada. O autor Nicholas Wade, citado para justificar que existem raças biológicas e diferenças genéticas com implicações no cérebro e comportamento de cada uma delas, foi desmascarado pelos próprios especialistas que cita na sua obra. O darwinismo social como programa político disfarçado afinal era uma fraude. Mas a maioria das opiniões do Henrique constitui o quê mesmo?

texto no Expresso

artigo a desmascarar o autor citado por Raposo

Para que serve o Presidente da República?

Nunca me entusiasmei com eleições presidenciais. Os debates sempre foram deslocados da realidade. A discussão resvala sempre para um de dois engodos. Os candidatos acham que o cargo de órgão máximo da República lhes confere um poder executivo, por um lado; por outro lado arriscam um salteado de fait-divers sobre a personalidade de cada um e a sua correspondência com a postura presidencial ideal.

Os mais afoitos ainda arriscam a citação de artigos da Constituição e a condenação do “sistema” em abstracto. Um sistema para o qual vão entrar. Só que o moralismo e o calculismo eleitoral impede-os de dizer o óbvio. A corrupção e outras vicissitudes não são meros problemas individuais que, em caso de extinção, suscitarão o surgimento de uma sociedade nova. Limpinha e engomada. Não. Este subjectivismo vazio agrada sobremaneira ao grande capital que lucra com o memorando da Troika e, de todo, pode ser acusado de ir contra a lei sistematicamente. Por outro lado, há quem faça a defesa intransigente da Constituição da República Portuguesa e denuncie a necessidade de acabar com a austeridade sem explicar muito bem como fazê-lo sem uma ruptura revolucionária.

O que ninguém diz é que todos os sintomas enunciados, da pobreza ao desemprego, não passam de efeitos causados por um modo de organização económica dominada pelo capital financeiro monopolista que realiza a sua acumulação com a ajuda do poder do estado; i.e. se vivemos afogados em impostos sem acesso a serviços públicos essenciais como a saúde ou educação é porque essa parte do salário que pagamos vai para PPP’s, recapitalização da banca ou pagamento do serviço de uma dívida agiota a credores, etc… Ninguém relaciona a proliferação de empregos sem direitos e os salários praticados com o aumento das fortunas dos burgueses da praça.

O que espero eu de um candidato a Presidente da República? Bem, em primeiro lugar que esteja consciente que se candidata a um cargo ao qual não deve qualquer isenção e moderação. Não vai ser o presidente de todos os portugueses – é normal, por isso, que cinzentos como Marcelo Rebelo de Sousa sejam promovidos para o exercício da presidência. Também não vai defender o interesse nacional. Esse interclassismo esconde a natureza burguesa do estado como órgão de dominação de uma classe sobre a outra. Os interesses de uns esbarram com os interesses dos outros. O seu discurso desde o dia 1 da campanha tem de se pautar pela defesa do trabalho contra o capital. Pela denúncia da situação precária de muitos trabalhadores e, acima de tudo, pelo contacto com os proletários e outros sectores populares atingidos. Além disso, deve afirmar-se contra o imperialismo das potências centrais europeias, principalmente a Alemanha e pugnar por um Portugal fora de uma situação dependente e periférica. Acabar com a ideia de um país entendido pelas revistas burguesas como viveiro de mão-de-obra barata.

É por isso que a vitória de um candidato conotado com a esquerda à presidência só pode ser encarada com utilidade se, além de fazer uso dos seus poderes, esse evento soprar ventos favoráveis para um novo período marcado por lutas organizadas dos trabalhadores incentivadas e apoiadas durante o seu mandato para inverter a correlação de forças.

Da proximidade e da comoção selectiva

Eu acho que existe um enorme problema com o texto de Rui Zink intitulado “Da distância, da proximidade e da indiferença”. Não que eu condene quem se emocione com os acontecimentos verificados em Paris. Não que eu duvide da obra de António Damásio sobre a influência do sistema límbico nas nossas tomadas de decisão; i.e. do poder das nossas emoções na sua relação com a razão. Não. O meu argumento vai mais no sentido de uma síntese que nos possibilite racionalizar os fenómenos e avançar da análise das aparências para a essência da questão sem que os sentimentos nos toldem a compreensão do mundo em que vivemos. De não anularmos a função do neocortex no processo. Só assim partiremos para um diálogo frutífero sobre a comoção selectiva. Não vejo isso patente no texto mencionado.

A certa altura, o autor responde à questão «Então há mortos de primeira e de segunda?» da seguinte maneira: «Quando há um choque porque morre gente próxima (e Paris é uma cidade portuguesa, ao contrário de Beirute, que poucos visitámos), este tipo de relativização custa a entender». Esta afirmação parece fazer sentido numa primeira leitura. Mas é facilmente desconstruída. Faria sentido se fizéssemos tábua rasa da história mundial e não ligássemos nenhuma a séculos de eurocentrismo e a uma manipulação mediática enquadrada num aparelho ideológico controlado por proprietários de capital com uma agenda política própria. O centro contra a periferia ou esta subordinada ao primeiro. Com efeito, a proximidade foi construída. Desde a história gâmica dos Descobrimentos à identidade europeia carolíngia. Não me refiro à familiar, porque não é isso que está em causa; mas assim como nos querem fazer crer que existe a Nação e o Outro, o bloco da Nato contra o resto do mundo ou a saudável competitividade mundial entre trabalhadores europeus e restantes, também nos querem convencer que o Hollande tem mais a ver comigo do que um palestiniano alvo do terrorismo sionista de Israel. Aliás, quem não se lembra do presidente francês abraçado ao primeiro-ministro Netanyahu na campanha “Je Suis Charlie”. Até Marine Le Pen foi Charlie. Eles facilmente pegariam no argumento do texto de Rui Zink para se desculparem pelo facto de não nutrirem a mesma indignação no que toca aos actos perpetrados pelo Boko Haram na Nigéria ou do próprio Estado Islâmico no Líbano. O facebook criou logo a aplicação com a bandeira francesa, e as restantes? Esta é a proximidade de que falamos.

Na verdade, o agenda-setting limita-se a traduzir o estádio de desenvolvimento capitalista actual. A massificação do meios de comunicação social acompanhou a expansão do capital monopolista. Mas se o fenómeno da globalização económica e financeira se estende por todo o mundo, por outro lado esconde uma enorme concentração de riqueza em poucos conglomerados económico-financeiros que dominam os mercados nas mais diversas áreas mas também nos mass media, na publicidade ou na indústria de entertenimento. As contradições gritantes entre as potências centrais e os países dominados reflectem-se na diferença de tratamento noticioso que vítimas de países neocolonializados são alvo em relação às mais fúteis “gordas” da manchete sobre a lua-de-mel de uma actriz hollywoodesca. Poucos sabem sobre o genocídio dos rohingya em Myanmar, mas é impensável que o ataque a dois soldados britânicos num qualquer palco de guerra não seja noticiado. É por isso que a imprensa pode ser um contra-poder ou um 4.º poder, dependendo de quem serve: visa informar a população, em especial os sectores mais vulneráveis da classe trabalhadora, da manipulação a que estão sujeitos ou cria uma narrativa que visa legitimar a invasão, o saque de recursos naturais e os lucros das classes dominantes de países pertencentes à NATO. Infelizmente vivemos uma época em que cerca de 90% do fluxo noticioso é gerado por 4 grandes agências noticiosas: Reuters, Agence France Press, a Associated Press e a United Press Internacional. Por aqui se explica que exista um incentivo à omissão e deturpação do que se passa no conflito sírio. Todos lamentamos as vítimas francesas. O que revolta é ninguém procurar a origem de todo o problema. O financiamento francês e americano a rebeldes que acabou nas mãos dos jihadistas da Frente Al-Nusra ou do Estado Islâmico, ou o negócio do armamento que lucra biliões para empresas francesas, estadunidenses mas também russas. Também não comentam o relacionamento amistoso de potências ocidentais com a Arábia Saudita que presta apoio ao Estado Islâmico sob a capa de fundações privadas. Por outro lado escondem as vítimas inocentes sírias atingidas por caças franceses e drones que deveriam acertar em alvos militares ou os ataques dos aliados turcos a posições das forças curdas do YPG que valentemente lutam contra o terrorismo. E a invasão do Iraque? Isso foi há muito tempo. Para não falar do relato acrítico ou mesmo parcial quando se procura desculpar os ataques israelitas a civis palestinianos em Gaza e na Cisjordânia. O Boko Haram raptou e matou milhares de crianças? Isso é longe. É lá na periferia. Paris é aqui tão perto. Daqui parto para outro excerto: «porque a todos os minutos acontecem horrores na aldeia global e seria humanamente impossível emocionarmo-nos igualmente com todos. Assim, como não podemos estar a todos os segundos a sentir todas as dores do mundo, o melhor é não sentirmos nenhuma, né?». Pois é, mas essa proximidade está longe de ser genuína, porque não podemos sentir aquilo que não está acessível aos nossos olhos e aos nossos ouvidos. Muito menos quando procuram utilizar a comoção para fazer oportunismo político e silenciar as raízes do problema. Agora até fecham as portas e as fronteiras a outras vítimas, que não francesas, dos mesmos carrascos.

Convenhamos que a conclusão de Rui Zink não me agrada. Não me parece que «é em momentos destes que sinto que os extremos podem de facto tocar-se. Os apologistas do nós-só-nós (ou eu-só-eu) e os samaritanos do amor-a-todos-igual-por-igual tocam-se, receio». Eu preferia que redireccionássemos o discurso para aquilo que realmente se passa. Um número obsceno de pessoas morre diariamente devido a aventureirismos belicistas que geram monstros no meio do processo de acumulação de capital em países longínquos. Lucros, lucros e lucros. Mas quem sofre não são “os franceses”, qual entidade abstracta. Quem mais sofre são as diferentes camadas de trabalhadores e a comummente chamada “classe média”, que pagam pelas aventuras de representantes políticos a mando do poder económico e financeiro, seja em que país for. Quem opera a relativização e até omissão do que se passa em outros países é a imprensa e todo o aparato ideológico burguês com propósitos bem concretos, não quem tenta alertar que uma vida francesa é igual a uma vida nigeriana, palestiniana ou síria.

Mudam-se os tempos, fica a vontade de Francisco Assis

O Assis que não é santo nenhum parou no tempo. Talvez partilhe com o famoso frade católico a imutabilidade do espaço e do tempo sem perceber que a sua apologética de um ideal centrista é datada e própria de um período histórico determinado. Geralmente é isto que acontece com as construções intelectuais forjadas por uma certa intelligentsia que advoga um modo-de-produção em crise. Necessita de artifícios abstractos e subjectivos para fugir a uma análise objectiva e material baseada na realidade, visto que esta coloca em causa a classe que ele defende e a eternização do capitalismo. Só assim percebemos os rodopios e cambalhotas dos seus apoios políticos, que tinham mais a ver com a pequena política do que propriamente com uma visão holística dos acontecimentos.

O dito cujo esconde-se na forma e nas aparências para simular uma falsa discordância porque sabe da distância diminuta que o separa do actual governo. No entanto precisa de fingir que é uma alternativa quando é uma alternância. Um espelho dos partidos socialistas europeus. Por um lado, a decadência da social-democracia e a proletarização e desqualificação de largas franjas da população com alcance até à pequena-burguesia colocaram o PS sob uma encruzilhada histórica, o que obriga Costa a uma ginástica política pela sobrevivência do partido. Isto está a acontecer por toda a Europa. Traduziu-se no Labour com a eleição de Jeremy Corbyn e na disponibilidade de Pedro Sánchez para entendimentos entre o PSOE e a esquerda eleitoralista espanhola. Por outro lado, as suas máquinas partidárias altamente burocratizadas e aparelhistas têm cada vez menos margem de manobra num orçamento tendencialmente minguante que necessita da aprovação do grande capital. E dividir responsabilidades com uma esquerda em crescimento não só coloca em causa os interesses mais imediatos da burguesia como ainda afasta Francisco Assis da liderança do PS por mais algum tempo. É a luta de classes mais desvelada e exposta que agudiza a crise no PS. As bases atingidas pela crise pressionam por um acordo que amenize os efeitos da austeridade enquanto Costa adia a questão da liderança no exercício da governação. Já Assis prefere o governo de gestão com dias contados para que ele dispute a liderança e a governação de Portugal. Nenhum se opõe ao projecto capitalista e imperialista da União Europeia. Cada um com a sua agenda.

Entre a “extrema-esquerda dos cantos de sereia delirantes e a direita radical“, Francisco Assis sabe qual dos lados escolher. A mesma opção que tomou Blair e outros adeptos da Terceira Via; i.e. ideologia neoliberal com rosa na lapela. O seu problema é que a realidade é revolucionária e cada vez mais desperta a consciência daqueles que se encontravam iludidos por uma falsa prosperidade no âmbito da União Europeia. A polarização da sociedade tende a coagir os actores políticos a uma clarificação das suas posições. A direita perdeu 700 000 votos e mesmo assim não chegou para o Partido Socialista vencer eleições. O mundo transforma-se contra a vontade de Assis.

Isto por acaso já acabou? Uma outra visão sobre as legislativas

A primeira reacção perante os resultados eleitorais da noite de ontem é de desalento, bem sei. A vitória da coligação Portugal à Frente quase parece fruto de um alinhamento estelar que se repete poucas vezes no tempo. O problema é precisamente esta visão imediata que não alcança uma leitura holística do panorama político. Nos termos da comparação, uma análise que não contempla o cosmos. E já agora, uma leitura meramente formal que ignora a dinâmica da realidade que vai bem além do parlamento.

O PSD e o CDS venceram as eleições e o PS obteve a segunda maior votação quando parecia caminhar triunfalmente. Juntos obtêm 69,2% dos votos, o que pode parecer um aval popular à política de austeridade. Todavia, se somarmos 43, 07% de abstenção aos resultados de BE (10,2%) – que duplicou a sua votação –  e CDU (8,3%) – que aumentou ligeiramente –  dentro do universo de votantes, talvez o mapa invertido comece a fazer mais sentido para entender o que realmente se passa.

Os partidos do governo foram alvo de uma preferência minoritária dos eleitores. Ganharam porque o método de hondt assim o determinou e em democracia formal é assim que funciona. Mas precisarão do parceiro PS e do apoio de Cavaco Silva para garantir condições de governabilidade. Neste ponto, estou fortemente convencido que chegarão a acordo, senão para governo, pelo menos para mais uma abstenção violenta rosada nas matérias que interessam, tais como directivas europeias e, principalmente, em relação a matérias orçamentais.

Não tenhamos ilusões, os próximos tempos serão difíceis. O chamado “arco da governação” ou, melhor dizendo, os representantes políticos da burguesia terão de se entender para aplicar o Tratado Orçamental Europeu e atacar a Constituição da República Portuguesa. Essa ofensiva do capital só tem condições caso os três se entendam. E nessas alterações constitucionais estará obviamente a alteração do sistema eleitoral com redução de deputados para garantir maiorias que eternizem a austeridade e garantam os interesses da classe dominante.

Posto isto, as crises também geram oportunidades e respostas. O Partido Socialista arrisca-se a tropeçar na “pasokização” e no completo esvaziamento de propostas – se é que ainda as tinha. O partido que na posse de Estado mais apostava na mediação entre capital e trabalho e na aliança interclassista por meio do assistencialismo e da defesa mínima do sector público perderá capacidade de surgir como alternativa ou empecilho quando a luta de classes se acentuar, daqui surgindo consequências óbvias para a esfera política.

Também temos de ter em conta o contexto internacional. Um nova crise capitalista poderá estar aí à porta, assim como uma nova recessão internacional. Veremos ainda se o petróleo se mantém ao preço actual. Lidos em conjunto, a dependente economia portuguesa está completamente sujeita às perigosas variações dos mercados mundiais.

Não é preciso referir mais razões para afirmar que a verdadeira luta se fará fora do parlamento. Basta mobilizar e organizar a enorme massa de descontentes que ficou fora das contas mediáticas. Com efeito, podemos testar os resultados eleitorais enquanto barómetro da consciência de classe já na votação do próximo Orçamento do Estado.

Corbyn e agora?

A vitória de Corbyn parece ter provocado uma onda de esperança não só nas hostes da classe trabalhadora britânica como também um pouco por todo o proletariado europeu. Quem diria que, no dia 12 de Setembro de 2015 o New Labour refém do blairismo e da Terceira Via de Giddens desde 1994 iria ser tomado de assalto por um deputado da velha guarda social-democrata do partido e com uma votação tão expressiva (59,5%).

Se é verdade que a sua eleição permitiu expor de forma clara o processo de agudização das contradições de classe que vinha em crescendo e foi camuflada pelo modo de funcionamento do sistema eleitoral maioritário que resultou na vitória dos Tories – a possível explicação até para o facto da alternativa política ter surgido no interior de um grande partido e não por via de uma outra estrutura partidária – também é verdade que nenhuma declaração do candidato trouxe à tona nem a natureza burguesa do seu partido nem do próprio Estado, enquanto órgão alienado de dominação de uma classe sobre a outra. Os grandes motes lançados vão de encontro com uma oposição à política de austeridade, algumas medidas de redistribuição de rendimento e até renacionalizações, assim como uma travagem nas ofensivas imperialistas praticadas pelos conservadores e seus antecessores; mas sem percebermos muito bem o que vai acontecer daqui para a frente.

O Labour enquanto máquina partidária continua na mão da sua ala direita, para não falar dos seus próprios representantes políticos. Caso Corbyn chegue às próximas eleições legislativas, esse momento representará uma enorme prova de resistência contra grande parte dos seus quadros e das campanhas da burguesia, ou então um percurso feito de cedências e agachamentos. E aqui se coloca a grande questão. No caso de afastamento, recuo ou simples e inevitável aburguesamento do Labour em funções executivas, que partido surge como alternativa para mobilizar, organizar e aprofundar o elemento consciente de toda essa base social proletária de apoio surgida desta campanha interna e que aumentará nos próximos tempos? Quando ficar provado para muitos dos agora apoiantes de Corbyn que o Estado não concilia interesses inconciliáveis e é preciso tomar uma posição de classe para enfrentá-lo e, em última instância, suprimi-lo?

Parece uma interrogação algo distante do presente, mas no dia 11 de Setembro foram muitas as evocações da tragédia em que culminou o processo chileno. Se Allende e outros não souberam beber dos balanços de experiências revolucionárias escritos por Marx, Engels ou Lenine, não quer dizer que estejamos diante de lições ultrapassadas pela história.