Partido da Terra, o futuro do velho fascismo agrário

Lustgarten, 1934

“o Movimento Partido da Terra baseia a sua intervenção política: Na defesa da “Terra” e dos seus valores culturais simbólicos e patrióticos (…) Na defesa da cultura, da língua, da história e no desenvolvimento da educação; Na afirmação da Lusofonia.”

in Programa Político do Partido da Terra

“Hundwiese”, Adolf Hitler

Duas formas de fascismo, ora antagónicas ora complementares, posicionam-se no grande tabuleiro da história: o ‘novo’ fascismo neoliberal, totalmente hegemónico, e o ‘velho’ fascismo agrário, de inspiração nazi, que muitos julgavam erradicado, mas que dá sinais de continuar vivo; residual, moribundo, mas vivo.

Em Portugal, o Partido da Terra veio parcialmente ocupar a vaga deixada aberta pela capitulação do Estado Novo na representação das identidades estáticas, ultrapassadas pela evolução da história contemporânea, que supostamente correspondiam ao mundo agrário (um mundo cuja imobilidade crónica o acabou por condenar à sua própria decomposição e diluição no império global da mercadoria). A ruralidade lusitana, em que o fascismo salazarista apoiava parte vital dos referentes identitários do seu ‘homem novo’ (como revela por exemplo o próprio urbanismo salazarista, repleto de referências ‘rurais’), perdeu grande parte da sua representação política após a Revolução dos cravos.

Hoje, um sector ultra-reaccionário da sociedade portuguesa, reunido no ecologista Partido da Terra, procura erguer um Portugal mitificado que gostaria que tivesse ficado cristalizado, mas que diversos acontecimentos da história recente (pós 25 de Abril) se encarregaram de subverter por completo. Nesse Portugal mitificado (do fado, do caldo verde, da enxada e de toda a miséria pitoresca que fez a graça das nossas aldeias), caberiam apenas identidades imobilizadas, inanimadas, eternamente agarradas ao cordão umbilical de uma pseudo-história que elogia um passado que é falsificado para permitir a reprodução da identidade nacional ; jamais as identidades dinâmicas e vivas que fazem a esmagadora maioria de nós, levados no fluxo de uma história que não pára de nos transformar, de nos fazer constantemente outros.

"The country church", Adolf Hitler
“The country church”, Adolf Hitler

Se fosse dado ao P.T. o poder para reerguer esse Portugal mitificado, trazendo de volta o velho fascismo agrário com a sua visão simplista, redutora e arcaica da sociedade, a maioria de nós deslizaria instantaneamente para as suas margens. Seria um Portugal repleto de ovelhas negras, com uma polícia necessariamente dotada de meios colossais para normalizar tamanha dissidência. Para o P.T., o que está hoje mal em Portugal… somos nós. Senão vejamos os problemas identificados no seu programa político (que passo a citar):

– “Portugal atravessa uma grave crise de identidade cultural e espiritual, (…) e de destruição do suporte biofísico que justifica sermos portugueses.”

 

– “No caos urbano, o desemprego e a exclusão social geram marginalidade e crime. As grandes cidades já não são boas…”

 

– “Assistimos à destruição das nossas cidades e das nossas aldeias por construções feias e desajustadas, que não respeitam nem os lugares (físicos e culturais), nem as pessoas.”

 

– “A ruralidade e as actividades que participam na construção da nossa Paisagem são esquecidas.”

 

– “Na nossa sociedade, a família continua (…) a assegurar aquilo que há de mais fundamental para o futuro do País – a formação dos seus recursos humanos, a transmissão dos valores que, em última análise, vão balizar a conduta dos actores sociais. Face a esta enorme responsabilidade, a família portuguesa tem vindo a ficar cada vez mais desprotegida (…) devido a factores (…) tais como: a maior parte das mulheres trabalham fora de casa (…) A diluição dos valores tradicionais sem a sua substituição por outros que constituam um quadro de referência de conduta (valores religiosos, éticos, etc).”

 

– “O aparecimento de novas “culturas juvenis” nascidas de realidades exteriores, (…) indicando a existência de problemas (…) para os quais há que dar resposta.”

 

– “O aparecimento e disseminação das drogas”.

 

– “Os problemas de marginalização e insegurança”.

Tudo isto soa hoje um tanto bucólico e demasiadamente nazi: a existência de uma justificação biofísica de “sermos portugueses”; os problemas da crise de identidade, da marginalidade e do crime gerados no caos urbano, da destruição das cidades e aldeias por construções “feias” que não respeitam a cultura, da família portuguesa que, enquanto pilar da organização social, se vê desprotegida porque as mulheres trabalham fora de casa, da diluição dos valores tradicionais, do consumo de drogas.

“Country road”, Adolf Hitler

A identificação destes ‘problemas’ traduz a percepção de um povo que abandonou as suas raízes rurais, que participa na destruição da beleza (arquitectónica, paisagística) que supostamente caracterizava o seu país, que se droga, que no supermercado rouba latas de conserva ao império de Belmiro de Azevedo (e fora do supermercado pratica outras formas de delinquência), que abandonou a religião e os seu valores tradicionais, que assimilou “culturas juvenis” vindas do exterior.

Enfim, um povo desnorteado, sem virtudes, que precisa urgentemente de uma política do gosto que o reoriente dando-lhe os padrões estéticos e culturais que correspondem à ‘sua’ lusitanidade, que precisa de um padre no bairro que lhe saiba transmitir os valores de que é deficitário, de um programa na escola que lhe ensine a comportar-se e a ser ‘português’.

Atentemos agora nalgumas das soluções, aparentemente decalcadas do programa nazi, que o programa do P. T. propõe para resolver os problemas citados e salvar Portugal da decadência e da degradação moral (e continuo a citar):

(a) “a dignificação da ‘Terra’, como imagem da Pátria”;

(b) “o estabelecimento de regras muito severas no regime de acesso das substâncias ou práticas geradoras de dependências: (…) Criação de instituições de detenção exclusiva para delinquentes com problemas de dependências, em locais distintos das prisões comuns(…) Nestas instituições deverá também ser reforçada a aprendizagem de ofícios de carácter manual e incentivadas práticas de desporto intensivo”;

(c) “a criação de um corpo de intervenção social de polícia, nos modelos de polícia de proximidade, para casos que requeiram rápida intervenção no campo social, sem a necessidade de recurso aos tribunais”;

(d) “regulamentação forte das tipologias de construção”;

(e) “a valorização das bases afirmativas da lusofonia: o Património, a Língua e a Cultura”;

(f) estimular a escola ”fundamentalmente ao ensino da língua e cultura portuguesa”;

(g) “a televisão pública tem que ser um veículo (…) de valores”;

(h) “a Identidade Cultural própria que caracteriza a expressão da Língua e dos artistas portugueses deve ser defendida vigorosamente da adulteração globalizante e dos modelos de moda a que a ordem económica vigente convida.”

 

Este moralismo ultra-maniqueísta assenta sobre os mesmos pilares sobre os quais se ergueu o nazismo: a Terra, o Património, a Língua, a Cultura (todas com maiúsculas, todas no singular), a família, as instituições de detenção para toxicodependentes onde se aprendem ofícios e se pratica desporto intensivo, a polícia disseminada por todos os quarteirões pronta a punir rapidamente sem perdas de tempo em tribunais, a escola mobilizada para o nacionalismo, a regulamentação forte sobre os tipos de construção autorizados, os meios de comunicação detidos pelo poder central usados para veicularem os valores por este mesmo poder instituídos, o colonialismo (através da lusofonia: “Para o mundo por nós descoberto, transportámos a Europa, mas nele deixámos um rasto humano próprio, uma Língua comum” – citação do mesmo programa), o controlo da arte que é produzida pela defesa vigorosa da “Identidade Cultural” que deve ser própria dos “artistas portugueses”.

Identificam-se em todo este programa traços do totalitarismo que nos anos 30 pretendeu fazer de cada alemão um homem puro, com uma identidade, uma arte e uma paisagem não contaminadas, vinculadas a uma pseudo-história inventada justamente para legitimar a criação desse homem puro. Um homem pronto a aceitar a erradicação (num primeiro momento pela intervenção policial, posteriormente pelo recurso a métodos de maior eficácia) dos seres moralmente (e geneticamente) degradados, que não poderiam honrar a Pátria.

About PDuarte

Historiador, jardineiro, horticultor. Vive na província. No tempo vago, que procura multiplicar de dia para dia, perde-se em viagens, algumas pelos montes em redor, outras pelos livros que sempre o acompanham. Prefere o vinho à blogosfera, a blogosfera ao Parlamento.

11 opiniões sobre “Partido da Terra, o futuro do velho fascismo agrário

  1. Nunca li um artigo que diga tanta asneira. Francamente estou pasmado pois nunca vi chamar de fascista/nazista ao Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles fundador do Partido da Terra e seu Presidente Honorário. Enfim uma prosa cheia de não verdades com frases tiradas fora do contexto, em resumo um artigo sem pés e cabeça escrito por um ignorante.

      1. Fundamentar o que ? Alias o Anónimo diz tudo – ” Enfim uma prosa cheia de não verdades com frases tiradas fora do contexto, em resumo um artigo sem pés e cabeça escrito por um ignorante.”

      2. “Fundamentar: Dar fundamento a. Estabelecer. Provar. Documentar. Alicerçar.”

        A partir de agora quem não fizer isto não tem comentário publicado.

  2. Ao contrário da esquerda estatista e partidocrata, o Partido da Terra parece pelo menos ter alguma noção dos verdadeiros desafios que Portugal e a humanidade enfrentam com a crise energética e o colapso dos ecossistemas. Soberania e sustentabilidade são de facto dois conceitos decisivos para um programa político e é lamentável que a esquerda não perceba que as alternativas do século XXI são entre a ecologia política e a barbárie. É porque a esquerda não está a perceber nada do que se passa no mundo, que tem de ser um partido como o MPP a defender o óbvio: que o capitalismo é insustentável, que a democracia representativa é uma farsa, que a economia é apenas um subsistema da realidade biofísica e que a economia de crescimento e o produtivismo têm os dias contados. E em vez de ler com atenção o programa do MPP e aprender com ele a identificar os verdadeiros problemas que o mundo enfrenta, a esquerda prefere entreter-se com fantasias da era do crescimento e lutar com fantasmas do passado, como o nazismo. Cada vez menos as propostas da esquerda tradicional fazem sentido, porque os seus proponentes não percebem que o mundo mudou, que já não estamos em 1789, nem 1848, nem 1971, nem 1917, nem 1936. Um programa político realista tem de ter por base a noção de que a era da abundância e do consumismo acabou, que no futuro vamos todos ser necessariamente mais pobres, gostemos ou não da ideia. A sociedade industrial está a destruir o planeta Terra. Infelizmente, a esquerda anda distraída das preocupações ecológicas e ainda não deu por nada. Gostemos ou não da ideia, a soberania alimentar é fundamental para um país, porque a globalização que nos traz laranjas da áfrica do Sul tem os dias contados. Num mundo em plena crise energética, o sector primário tem necessariamente de voltar a ser uma prioridade. Nisso o MPT tem toda a razão. No dia em que a esquerda começar a perceber que o crescimento exponencial num planeta finito é matematicamente impossível, pode ser que a esquerda comece a dizer coisas com sentido. Até lá, ainda bem que existem pessoas como Ribeiro Telles.

    1. Há por aí um fascismo escondido, subterrâneo, que ninguém melhor do que a velha toupeira poderá localizar e desenterrar. (Foi o que este post também procurou fazer.)

      Um bem haja à velha toupeira!

  3. É verdade que o programa político do Partido da Terra tem muitos momentos infelizes e bastante reaccionários, a mim deixa-me os cabelos em pé ouvir falar do “valores da família”, p ex …Mas daí a serem nazis penso já ser um exagero. Talvez fascistas rurais ao género do Estado Novo, talvez, mas nazis não

    1. “Momentos infelizes”? Descrever com estas palavras um programa que tem demasiados pontos em comum com o programa NAZI é muito mais do que infeliz. É um absurdo de quem não entendeu NADA do que pretende esse programa.

      Mas para entender alguma coisa é preciso começar por LER O PROGRAMA, linha por linha, ideia por ideia, que foi o que fiz antes de escrever este post.

      Relativamente aos pontos de convergência entre o MPT e o nazismo, queira ter a bondade de ler atentamente isto e depois, se quiser, conversamos: http://passapalavra.info/2011/12/49001 . Numa base séria e informada estarei cá para discutir consigo.

      Volte sempre.

      1. Agradeço-lhe sinceramente o link que me deixou porque eu, não obstante mem considerar bem informado sobre a natureza do nazismo, considerou ser sempre bom acrescentar conhecimentos a esse assunto.
        O que eu quis expressar acima posso-o fazer através de uma outra analogia: lá por Himmler ter sido um apaixonado pela música de Schubert – e foi – não quer dizer que todos o que gostem dessa música sejam nazis nem não pouco que o próprio compositor tivesse algo a ver com essas ideias.
        Eu estou a dar esta importância ao assunto porque me considero um radical anti-nazi, visto considerar que não foi necessariamente um fenómeno isolado mas que em pequena escala é um perigo sempre à espreita, mas por outro lado preocupam-me imensamente os chamados problemas ambientais, obviamente longe das leituras e soluções simplistas e demagógicas do partido supracitado

  4. Quanto ao Partido da Terra, um único pormenor chega para os refutar: os problemas ambientais são problemas à escala global e dizem respeito a todos os povos do planeta, e isso não se compadece com o nacionalismo tacanho preconizado pelo dito Partido.

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