Quando a crítica à dominação masculina esbarra na firewall do fascismo neoliberal

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(nota prévia: este post é uma curtíssima réplica de um sismo que, apesar da sua baixa magnitude, gerou uma razoável onda de repugnância na rede. Desta feita, irei argumentar sem repugnar, acompanhando com imagens infantis o fio da argumentação. Partilhem/critiquem à vontade, sem pudor.)

Para meu espanto, nas tascas blogosféricas (não falo já do Parlamento, porque aí NADA se discute; o consenso é total e de todas as bancadas ouvimos diariamente o mesmo apelo: “venham os investidores salvar o país”; “o país precisa de mais investimento”; e lá ficamos nós à espera que o capital anónimo, em livre trânsito pelas nossas vidas, nos venha salvar…), há um tema que pouco se discute:

A DOMINAÇÃO MASCULINA

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Ora, a dominação masculina não ocorre só no Facebook, tema que abordei em post anterior. Ela está presente em toda a parte: no cinema, na publicidade, nos salários que se pagam a homens e mulheres, nas mãos que seguram a vassoura lá de casa, na indústria da música, nas escolas, nos infantários, nos escaparates das farmácias. Enfim, EM TODO O LADO.

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A dominação masculina começa precisamente na literatura infantil que habita o quarto de qualquer criança ou a sala de qualquer infantário. Na esmagadora maioria destes livros, é sempre o ‘menino’ que ocupa o centro da acção, ficando a ‘menina’ remetida para papéis secundários. Regra geral, o papel feminino é auxiliar-decorar-emoldurar, com um acento levemente erótico, a acção masculina, do herói.

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É natural que uma sociedade que não debata os conteúdos dos livros/filmes com que entretém os seus filhos tão pouco debata os conteúdos das imagens com que se representa uma massa cada vez maior de mulheres. É pelo menos coerente que assim seja.

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Ao lançar um debate sobre este tema , esperava um pouco mais de criatividade na rede para aprofundá-lo. No entanto, ele esbarrou num contra-argumento intransponível que  creio poder sintetizar-se assim:

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“Como cada um quer representar e mostrar o seu corpo é com cada um” (retirado do blog ‘Ladrões  de Gado’).

Este super-argumento (que poderia vir da Margarido Rebelo Pinto) ilustra aliás todo um zeitgeist, todo o sumo do ‘pensamento’ de uma época. Poderia ser uma frase retirada de um spot publicitário da Vodafone ou da Desigual ou de um discurso de Berlusconi ou de Obama. Ele é por isso profundo. Muito mais profundo do que tudo o que alguma vez escrevi ou venha a escrever: ele vem das entranhas do regime.

O fascismo neoliberal injecta diariamente e em doses industriais esta mensagem através dos diferentes média: somos livres e únicos e especiais e toda a indústria e toda a mercadoria e toda a moda e todo o poder e toda a polícia e todas as invasões militares não existem senão para nos fazerem mais felizes e mais belos e mais seguros e mais livres e mais democráticos!!!!!!

Um último apontamento: não existem empregados domésticos, pois não? Apenas empregadas domésticas; há quem lhes chame ‘mulheres a dias’. Se eu questionar porque é que apenas mulheres desempenham esta profissão, os mesmos escribas ao serviço da firewall do fascismo neoliberal dir-me-ão, seguindo a mesma linha de raciocínio (que ilustra um novo totalitarismo de consequências ainda imprevisíveis):

“O trabalho que cada um quer desempenhar é com cada um”. E acabamos sempre a esbarrar no mesmo: todos livres todos únicos todos especiais todos individuais todos felizes todos contentes.

Acabaram-se as discussões.

«I AM WHAT I AM.» É esta a última oferenda do marketing ao mundo, o estádio último da evolução publicitária, para lá, muito para lá de todas as exortações a sermos diferentes, a sermos nós próprios e a bebermos Pepsi. Décadas de conceitos para aqui chegar, à tautologia pura. EU = EU.  (…) O meu corpo pertence-me. Eu sou eu, tu és tu. (…) Personalização de massa. Individualização de todas as condições — de vida, de trabalho, de infelicidade. Esquizofrenia difusa. Depressão galopante. Atomização em pequenas partículas paranóicas. Histerização do contacto. Quanto mais quero ser Eu, maior é a sensação de vazio. Quanto mais me exprimo, mais me esgoto. Quanto mais vou atrás das coisas, mais cansado fico. Eu ocupo-me, tu ocupas-te, nós ocupamo-nos do nosso Eu como num entediante balcão de atendimento. Tornámo-nos os representantes de nós próprios — estranho comércio, fiadores de uma personalização que se assemelha, afinal, a uma amputação.”
Comité Invisível, “A insurreição que vem”

About PDuarte

Historiador, jardineiro, horticultor. Vive na província. No tempo vago, que procura multiplicar de dia para dia, perde-se em viagens, algumas pelos montes em redor, outras pelos livros que sempre o acompanham. Prefere o vinho à blogosfera, a blogosfera ao Parlamento.

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