Coimbra, cidade desaparecida – deserto, metrópole, espectáculo

Sou natural de um lugar que já não existe.

A Alta de Coimbra na década de 30 do século passado

Deserto

Nasci na Rua da Sofia, em plena Baixa, haviam passado cinco anos desde a queda do Estado Novo. Era, naquela altura, o coração da cidade. Para lá de estar no centro da vida comercial, mediava entre o labirinto de ruelas populares da Baixinha e os acessos à parte alta e nobre da cidade. Nessa altura, Coimbra era palco de uma vida social razoavelmente animada. Os moradores abasteciam-se diariamente no mercado central e em pequenas mercearias espalhadas por todo o lado. Encontravam-se regularmente em cafés com amigos e vizinhos, facto que explica as inúmeras memórias que guardo do concorrido café situado no rés-do-chão do primeiro prédio onde vivi. Nas noites de Verão, na Praça da República, reunia-se uma multidão de pessoas de todas as idades, vindas maioritariamente a pé, para simplesmente se encontrarem umas com as outras, sem o ânimo de consumir o que quer que fosse. Lembro-me da praça cheia de diferentes grupos de pessoas, formando círculos, de pé à conversa, enquanto os mais pequenos corriam errantes como morcegos, perdidos no meio da agitação.

Disseminado por ruas, mercado, mercearias, praças e cafés, o convívio marcava a vida da cidade e o carácter dos seus habitantes. Talvez fosse ele a explicar por que era tão fácil encontrar-se simpatia, abertura e alegria num conjunto tão vasto de pessoas. Foi nesse ambiente tolerante, de intensa comunicação e interacção colectiva, que tive a sorte de crescer. Entretanto, muitos cafés desapareceram ou foram completamente transformados, bem como a quase totalidade das mercearias e do pequeno comércio. As praças desertificaram-se, acabando por tornar-se cenários pitorescos para esplanadas que, como é hoje evidente no Largo da Portagem ou na Praça Velha, servem acima de tudo as pobres expectativas turísticas. As ruas por onde, em criança, eu andara livremente a pé, de skate e de bicicleta, tornaram-se rodovias poluídas e congestionadas, com um baixíssimo rácio de transeuntes por automobilistas. O abandono e a perda de todos estes lugares – aos quais é até possível somar esses velhos bastiões do comunitarismo e da autogestão que eram as Repúblicas de estudantes, hoje uma pálida réplica do que ainda há poucas décadas eram – levou à ruína da vida colectiva.

A Alta, antes das demolições do Estado Novo

Metrópole

O que está agora no lugar de uma cidade outrora viva e vivida é o embrião de uma metrópole indiferente aos habitantes, cujo território, devorando os montes que antes rodeavam a cidade e cujo denso mato me fartei de explorar em adolescente, se expandiu bem para lá dos limites citadinos. Na metrópole impessoal que gradualmente se estende a vilas e cidades vizinhas como Cantanhede, Montemor ou Condeixa, não há já ruas, perigosamente favoráveis aos encontros espontâneos e à vida colectiva, mas meros eixos rodoviários que não podem ser vividos nem apropriados, apenas individualmente atravessados, como eficientes auto-estradas.

Após décadas de esvaziamento da sua vida e cultura, a ‘lusa Atenas’ – como alguém outrora chamou à cidade – está agora diluída no seio de um território homogéneo, em contínua expansão geográfica, meticulosamente planificado por industriais, empresários, construtores e decisores políticos. Este território sem comunidade, desenhado pelos poderes públicos e privados, serve em primeiríssimo lugar o restrito grupo de empresas que sobreviveram à concentração oligopolista do mercado único, as quais, graças a uma rede de infraestruturas públicas expressamente criadas em seu serviço, lhe impuseram os novos pólos geográficos. Estruturam assim o desenho do novo espaço urbano grandes superfícies (de cadeias como Continente, Staples, Fnac, Decathlon, Lidl, Leroy Merlin, etc.) onde se escoam as mercadorias das multinacionais que comandam a produção industrial (Samsung, Nike, Microsoft, Nestle, Procter & Gamble, Pfizer, etc.). Este território, feito à medida da economia e não da colectividade, incita os indivíduos ao consumo mercantil massificado enquanto bloqueia a comunicação directa e livre entre si.  

Para lá destas zonas comerciais, os novos centros periféricos, sobre os quais se organiza a metrópole emergente, dispõem-se igualmente em torno de zonas residenciais, empresariais, universitárias e hospitalares, todas elas desconectadas da ‘velha’ cidade e devidamente separadas entre si, num zoneamento taylorista do território que aumenta a extensão dos trajectos diários e torna os habitantes dependentes do automóvel. É uma dispendiosa rede de mobilidades, dominada pelos transportes individuais em detrimento dos colectivos, que articula estas diferentes zonas num todo orgânico, produtivo e eficiente.

Espectáculo

No seio do novo quadro urbano, a ‘velha’ cidade, tornada obsoleta com o aparecimento dos novos centros periféricos, viu serem-lhe atribuídas duas novas funções interligadas: uma simbólica, a de recurso identitário; outra económica, a de recurso turístico. Se, num primeiro momento, decisores públicos e investidores privados esvaziaram e suprimiram a cidade para colocarem no seu lugar a metrópole, que servia infinitamente melhor os interesses mercantis (por potenciar o consumo massificado), num segundo momento, decidiram recuperar a imagem da cidade desertificada, quando perceberam que também esta poderia ser vendida (a um novo público: os turistas), enquanto paralelamente poderia funcionar como poderoso símbolo identitário (para os habitantes da metrópole emergente – é por exemplo esta imagem nostálgica que surge no anúncio da candidatura “Coimbra Capital Europeia da Cultura 2027”).

O turismo, surgido na época romântica como mercantilização de cenários pré-industriais e entrado agora na fase em que se expandiu a todas as velhas cidades pitorescas onde é possível levar turistas em segurança e conforto, não poderia deixar de se interessar pelo território da velha Coimbra entretanto desertificado. Os turistas encontrarão facilmente um cosy apartment numa ruela estreita da Baixinha, perto de cafés com doçaria regional e de uma nova mercearia típica onde poderão comprar souvenirs em forma de sabonetes artesanais ou de conservas de carapaus em tomate. A cidade que fotografam está morta. A Baixa está morta. A Alta está morta. Foram esvaziadas das múltiplas funções (económicas, sociais, culturais) que lhes permitiam serem habitadas por uma população diversa. Mas a sua materialidade continua lá. Mais ‘típica’ e ‘autêntica’ do que nunca. Recuperada e requalificada em prol da monofuncionalização turística.

Há já alguns anos era editado um livro surpreendente sobre Coimbra chamado “A velha Alta desaparecida”. Na altura, comoveu muitos dos jovens amantes da cidade, que assim ficaram a conhecer o que teve de ser terraplanado para que o Estado Novo erguesse o monumental complexo universitário na zona alta, hoje parte do conjunto classificado como Património Mundial da UNESCO. Quem, como eu, fizera as suas primeiras derivas urbanas naquele cenário sentiu uma revolta difícil de descrever ao ver as imagens do que se perdera. Se hoje se editasse um livro pertinente sobre a mesma cidade, o título teria de ser “Coimbra, cidade desaparecida”. Porque o que entretanto desapareceu não foi um simples fragmento. Foi a cidade inteira. Mas permaneceu a sua forma, numa versão cada dia mais restaurada e higienizada, enquanto mercadoria cultural de consumo turístico, como tem ocorrido em tantas outras cidades, em Portugal e no mundo.

Eis um fado que não pertence só a Coimbra.

About PDuarte

Historiador, jardineiro, horticultor. Vive na província. No tempo vago, que procura multiplicar de dia para dia, perde-se em viagens, algumas pelos montes em redor, outras pelos livros que sempre o acompanham. Prefere o vinho à blogosfera, a blogosfera ao Parlamento.

Uma opinião sobre “Coimbra, cidade desaparecida – deserto, metrópole, espectáculo

  1. Sem um leitura profunda permito-me dizer que tenho reservas em relação à imagem de uma cidade boa outrora, versus cidade má actualmente, embora seja visível e motivo de chacota o estado a que Coimbra chegou.
    Não há dúvida que do ponto de vista do consumidor de cultura nunca houve, como hoje, tantas coisas para fazer, mesmo sem Avenida, Tivoli e Sousa Bastos.
    Infelizmente o território não foi desenhado nem planificado por ninguém.
    A cidade velha sem aspas sempre teve atribuídas as funções simbólica, a de recurso identitário e em menor escala função económica, a de recurso turístico.
    Se o Estado Novo não tivesse erguido” o monumental complexo universitário na zona alta”,
    a desertificação não seria maior? Não quero justificar o crime que aliás continua, desde logo com o contínuo desaparecimento de ruas pavimentadas por calhaus rolados submersos em alcatrão.
    A última foi a rua do Padrão certamente não a pedido da Critical S.
    Lá está, a cidade é dos automóveis.

    Tenho que ler com mais atenção, mas pergunto: 1podemos ter esperança?
    2- onde discutir estes assuntos e outros, nos C por Coimbra?

    Cumprimentos

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