Guy Debord e a clandestinidade da vida privada. (Prólogo de “O Uso dos Corpos” de Giorgio Agamben)

Foi este mês lançado em Itália “L’Uso dei Corpi” de Giorgio Agamben. Com este volume Agamben termina a sua série “Homo Sacer”, iniciada em 1995 com a publicação de “Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua”. Deixamos aqui uma tradução apressada do seu prólogo, um olhar extremamente lúcido sobre a figura de Guy Debord. 

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1. É curioso como em Guy Debord uma consciência lúcida da insuficiência da vida privada era acompanhada pela mais ou menos consciente convicção de que existia, na sua própria existência ou na dos seus amigos, algo de único e de exemplar, que exigia ser recordado e comunicado. Já em Critique de La séparation Debord evoca, enquanto algo de certo modo intransmissível, “essa clandestinidade da vida privada sobre a qual nunca temos mais do que documentos derisórios”; E todavia nos seus primeiros filmes e ainda em Panégyrique não cessam de desfilar os rostos dos seus amigos um após outro, o de Asger Jorn, o de Maurice Wyckaert, o de Ivan Chtcheglov, e finalmente a sua própria cara, junto às das mulheres que amou. E não só, em Panégyrique surgem também as casas que habitou, o nº 28 da via delle Caldeie em Florença, a casa de campo em Champot, o Square des missions étrangères em Paris (na verdade o nº 109 da rue du Bac, o seu último endereço parisiense, na sala do qual uma fotografia de 1984 o retrata sentado num divã de couro inglês que parecia agradar-lhe).

Dá-se aqui uma contradição central, que os situacionistas não conseguiram superar e, simultaneamente algo de precioso que exige ser retomado e desenvolvido: talvez a obscura e inconfessada consciência de que o elemento genuinamente político consiste exactamente nesta incomunicável e quase ridícula clandestinidade da vida privada. Já que mesmo essa – a vida clandestina, a nossa foma-de-vida – é tão intima e próxima, que se a tentamos capturar nos deixa nas mãos apenas a impenetrável e tediosa quotidianidade. E todavia talvez seja mesmo esta homónima, promíscua e sombria presença a custodiar o segredo da política. A outra face do arcanum imperii na qual naufraga toda a biografia e toda a revolução. E Guy, que era tão hábil e perspicaz quando tinha de analisar e descrever as formas alienadas da existência na sociedade espectacular, é então assim tão cândido e impotente quando tenta comunicar a forma da sua vida e quando tenta olhar na cara e explodir a clandestinidade com a qual partilhou a viagem até ao último momento.

2. In Girum imus nocte et consumimur igni (1978) abre com uma declaração de guerra contra o seu tempo e prossegue com uma análise inexorável das condições de vida que a sociedade mercantil no estádio supremo do seu desenvolvimento instaurou sobre a totalidade do planeta. Inesperadamente a meio do filme a descrição detalhada e impiedosa cessa para dar lugar à evocação melancólica e quase débil das memórias e eventos pessoais que antecipam a intenção declaradamente autobiográfica de Panégyrique. Guy recorda a Paris da sua juventude, que já não existe, em cujas ruas e cafés tinha partido com os seus amigos em obstinada busca desse “Graal nefasto, que ninguém deseja”. Embora o Graal em questão, “fugazmente vislumbrado”, mas nunca “encontrado”, tivesse indiscutivelmente um significado político, já que os que o procuravam “se encontraram capazes de compreender a vida falsa à luz da verdadeira”, o tom da comemoração, marcado por citações da Eclisiastes, de Omar Khayyan, de Shakespeare e de Bossuet, é no entanto indiscutivelmente nostálgico e sombrio: “a meio do caminho da verdadeira vida, fomos rodeados por uma melancolia escura, expressa por palavras tristes e de escárnio, no café da juventude perdida”. Desta juventude perdida, Guy recorda a desordem, os amigos e os amores (“como não recordar os bandidos charmosos e as prostitutas orgulhosas com quem habitei esses ambientes duvidosos”), enquanto no ecrã surgem imagens de Gil J. Wolman, de Ghislain de Marbaix, de Pinot-Gallizio, de Attila Kotanyi e de Donald Nicholson-Smith. Mas é no fim do filme que o impulso autobiográfico reaparece com mais força e a visão de Florença quando era livre se entrança com as imagens da vida privada de Guy e das mulheres com quem viveu nessa cidade na década de setenta. Veem-se depois passar rapidamente as casas onde Guy viveu, o Impasse de Clairvaux, a rue St Jacques, a rue St. Martin, uma igreja em Chianti, Champot e, mais uma vez, os rostos dos amigos, enquanto se escutam as palavras da canção de Gilles em Les Visiteurs du soir: “Tristes enfants perdus, nous errions dan la nuit…”. E, poucas sequências antes do final, os retratos de Guy aos 19, 25, 27, 31, e 45. O nefasto Graal, do qual os situacionistas partiram em busca, concerne não apenas a política, mas de certo modo também a clandestinidade da vida privada, da qual o filme não hesita em exibir, aparentemente sem pudor, os “documentos ridículos”.

3. A intenção autobiográfica estava, de resto, já presente no palíndromo que dá nome ao filme. Logo após invocar a sua juventude perdida, Guy acrescenta que nada expressa melhor o dispêndio do que esta “antiga frase construída letra após letra como um labirinto sem saída, de modo a recordar perfeitamente a forma e o conteúdo da perda: in girum imus nocte et consumimur igni ‘Andamos em circulo pela noite e somos devorados pelo fogo’”.

A frase, definida por vezes como o “verso do diabo”, provém, na verdade, segundo uma cursiva indicação de Heckscher, da literatura emblemática e refere-se às traças inexoravelmente atraídas pela chama da vela que as consumirá. Um emblema é composto por uma impresa – uma frase ou um mote – e por uma imagem; nos livros que pude consultar, a imagem da traça devorada pelo fogo surge frequentemente, nunca associada ao livro em questão mas sim a frases que se referem à paixão amorosa (“assim o prazer vivo conduz à morte”, “assim de bem amar porto tempestuoso”) ou, em casos mais raros, à imprudência na política ou na guerra (“non temere est cuiquam temptanda potentia regis”, “temere ac periculose”). Nos Amorum emblemata de Otto van Veen (1608), a contemplar as traças que se precipitam em direção à chama da vela está um amor alado e a impresa diz: brevis et damnosa voluptas.

É provável, então, que Guy, escolhendo o palíndromo enquanto título, paragonasse a si próprio e aos seus companheiros às traças, que amorosamente e temerariamente atraídas pela luz estão destinadas a perder-se e a consumir-se no fogo. Na Ideologia Alemã – uma obra que Guy conhecia perfeitamente – Marx evoca criticamente a mesma imagem: “e é assim que as borboletas noturnas, quando o sol do universal se põe, procuram a luz de lâmpada do particular”. Tanto mais singular é que, apesar desta advertência, Guy tenha continuado a seguir esta luz, a espiar obstinadamente a chama da existência singular e privada.

4. No final dos anos noventa, nas bancas de uma livraria parisiense, o segundo volume de Panégyrique, contendo a iconografia, estava exposto – por acaso ou por intenção irónica do livreiro – ao lado da autobiografia de Paul Ricouer. Nada é mais instrutivo do que comparar o uso das imagens em ambos os casos. Enquanto as fotografias do livro de Ricoeur retratam o filósofo exclusivamente no decurso de convénios académicos, como se ele não tivesse tido outra vida fora deles, as imagens de Panégyrique pretendiam um estatuto de verdade biográfica que observava a existência do autor em todos os seus aspectos. “A ilustração autêntica”, adverte a curta promessa, “ilumina o discurso verdadeiro… saberemos finalmente então qual a minha aparência em diferentes idades; e que tipo de rostos sempre me rodearam; e que lugares habitei…”. Uma vez mais, não obstante a evidente insuficiência e banalidade dos seus documentos, a vida – a vida clandestina – está em primeiro plano.

5. Uma noite, em Paris, Alice, quando lhe disse que muitos jovens em Itália continuavam interessados nos escritos de Guy e que esperavam dele uma palavra, repondeu: “Existimos, deveria ser-lhes suficiente”. Que queria dizer “existimos”? Nesses anos viviam isolados e sem telefone entre Paris e Champot, de certo modo com os olhos postos no passado, e a sua “existência” estava, por assim dizer, totalmente achatada na “clandestinidade da vida privada”.

No entanto, ainda um pouco antes do seu suicídio em novembro de 1994, o titulo do seu último filme preparado para o Canal Plus: Guy Debord, son art, son temps não parece – apesar do esse son art realmente inesperado – de todo irónico na sua intenção biográfica e, antes de se concentrar com extraordinária veemência no horror do “seu tempo”, esta espécie de testamento espiritual reitera com o mesmo candor e as mesmas velhas fotografias a evocação nostálgica da vida transcorrida.

O que significa então “existimos”? A existência – este conceito fundamental na primeira filosofia do ocidente – terá talvez constituitivamente a ver com a vida. “Ser”, escreve Aristóteles, “para os vivos significa viver”. E, alguns séculos depois, Nietzsche precisa: “ser: não temos outra representação que viver”. Trazer à luz – fora de qualquer vitalismo – o intimo cruzamente de ser e existir: esta é certamente hoje a tarefa do pensamento (e da política)

6. A Sociedade do Espectáculo abre com a palavra “vida” (“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos) e até ao último momento as análises do livro não cessam de pôr em causa a vida. O espectáculo, onde “tudo o que era directamente vivido se distancia numa representação”, é definido enquanto uma “inversão concreta da vida”. “Quanto mais a vida do homem se torna no seu produto, tanto mais ele é separado da sua vida”. A vida nas condições espectaculares é uma “falsa vida”, uma “sobrevivência” ou um “pseudo-uso da vida”. Contra esta vida alienada e separada, é postulado algo que Guy chama “vida histórica”, que surge logo no renascimento como uma “ruptura alegre com a eternidade”: “na vida exuberante das cidades italianas… a vida é conhecida enquanto um disfrute da passagem do tempo”. Anos antes, em Sur le passage de qualques personnes e em Critique de la séparation, Guy afirma de si e dos seus companheiros que “queriam reinventar tudo todos os dias, tornar-se patrões e donos da sua própria vida”, e que os seus encontros eram como “sinais provenientes de uma vida mais intensa, que nunca foi verdadeiramente encontrada”.

O que fosse esta vida “mais intensa”, o que era arruinado ou falsificado no espectáculo ou simplesmente o que deve ser entendido por “vida na sociedade” não é esclarecido em qualquer momento; e no entanto seria demasiado fácil censurar ao autor incoerência ou imprecisão terminológica. Guy não faz que repetir uma postura constante na nossa cultura, na qual a vida não é nunca definida enquanto tal, mas é recorrentemente dividida em Bios e Zoè, vida politicamente qualificada e vida nua, vida pública e vida privada, vida vegetativa e vida de relação, num modo em que nenhuma das partições é determinável senão na sua relação com a outra. E é talvez em última análise exactamente o indecidível da vida que faz com que ela seja sempre de novo decidida singular e politicamente. E a indecisão de Guy entre a clandestinidade da sua vida privada – que, com o passar do tempo, devia parecer-lhe mais fugidia e indocumentável – e a vida histórica, entre a sua vida individual e a época obscura e irrenunciável na qual ela esteve inscrita, traduz uma dificuldade que, pelo menos nas condições presentes, ninguém se pode iludir de ter resolvido de uma vez por todas. De qualquer modo, o Graal obstinadamente procurado, a vida que inutilmente se consome na chama, não era reduzível a nenhum dos termos opostos, nem à idiotez da vida privada nem ao incerto prestígio da vida pública, revogando assim a questão da própria possibilidade de as distinguir.

Ivan Illich observou que a noção corrente de vida (não “uma vida”, mas “a vida” em geral) é percecionada enquanto “facto científico”, que não tem já qualquer relação com a experiência do vivente singular. A vida é algo anónimo e genérico, que pode designar tanto um espermatozoide, uma pessoa, uma abelha, um urso ou um embrião. Deste “facto científico”, tão genérico que a ciência renunciou a procurar-lhe uma definição, a Igreja fez o último recetáculo do sagrado, e a bioética o termo chave da sua impotente absurdez.

Assim como nessa vida se insinuou um resíduo sacro, a outra, a clandestina, que Guy seguia, tornou-se ainda mais indescritível. A tentativa situacionista de restituir a vida à política esbarra com uma dificuldade posterior, mas não é por isso menos urgente.

O que significa que a vida privada nos acompanhe enquanto uma vida clandestina? Acima de tudo, que está separada de nós como está um clandestino, e do mesmo modo que é de nós inseparável no modo como, enquanto clandestino, partilha subrepticiamente a vida connosco. Esta cisão e inseparabilidade definem tenazmente o estatuto da vida na nossa cultura. A vida é algo que pode ser dividido – e no entanto sempre articulado e reunido numa máquina médica, filosófico-teológica ou biopolítica. Assim não é apenas a vida privada que nos acompanha enquanto clandestina na nossa breve ou longa viagem, mas a própria vida corpórea e tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera da chamada “intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos o procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar ainda que lhe dilacere atrozmente a carne.

É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.

E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.

E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.

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