A dominação masculina, um facto arcaico, tenebroso, abominável… mas actual

Nas últimas décadas foi-se gradualmente instalando a crença de que a discriminação de género e a dominação masculina seriam realidades praticamente ultrapassadas no mundo ocidental. Para a esmagadora maioria das pessoas, as clivagens de natureza sócio-económico-social entre homens e mulheres deixaram de ser percepcionadas como um problema premente, actual, tendo em consequência desaparecido da agenda dos principais debates políticos. Esse problema tende a ser hoje visto como mais um dos abomináveis arcaísmos que apenas as sociedades islâmicas teimam em conservar. Por isso, quando se refere à questão da subjugação feminina, o senso comum elege estas sociedades inimigas como o alvo mais habitual da sua crítica. O mesmo senso comum que crê que a tristemente célebre barbearia no Chiado que, em jeito de provocação, admitia a entrada de cães mas não de mulheres não passaria de um caso isolado mas jamais de um evidente sintoma de uma sociedade que insiste em subjugar e ridicularizar as mulheres.

No entanto, há estatísticas que não confirmam o optimismo geral que parece reinar sobre esta matéria. Algumas revelam que essas clivagens não foram de todo ultrapassadas nos países ocidentais. De acordo com dados oficiais agora revelados, em Espanha, a repartição dos salários revela uma sociedade completamente dividida pela questão do género:

  • nos baixos salários, ligados às vidas precárias de quem é sadicamente explorado, abusado, escravizado pelo capital, dominam esmagadoramente as mulheres;
  • nos salários mais elevados (pelo menos 10 vezes superiores ao salário mínimo), estas desaparecem quase totalmente para darem o seu lugar aos homens, que detêm 82% do total.

Trocado por miúdos, são os homens quem, graças aos cargos que quase monopolizam na direcção/administração das grandes empresas, tomam as decisões estratégicas sobre a gestão sádica e cruel do corpo de quem está na base da hierarquia laboral (maioritariamente mulheres). No wc ou na caixa do hipermercado, por exemplo, a prática de formas modernas de escravatura reproduz, na esfera pública do trabalho, a mesma lógica arcaica de distribuição doméstica de tarefas que encontramos no lar mais machista e conservador da mais recôndita aldeia das Astúrias ou da Beira Alta: a mulher limpa e serve, como um corpo a quem se impõe um sorriso complacente mas a quem se priva de cérebro; ou melhor, como um corpo dócil e eficiente cujo cérebro está no homem que controla e avalia a performance e a rentabilidade desse corpo obediente, o qual para sobreviver (para ter um salário) tem de ser inserido numa lógica gestionária – uma lógica simultaneamente repressiva e produtiva.

 

About PDuarte

Historiador, jardineiro, horticultor. Vive na província. No tempo vago, que procura multiplicar de dia para dia, perde-se em viagens, algumas pelos montes em redor, outras pelos livros que sempre o acompanham. Prefere o vinho à blogosfera, a blogosfera ao Parlamento.

3 opiniões sobre “A dominação masculina, um facto arcaico, tenebroso, abominável… mas actual

  1. tinha que ser seu este artigo…

    já tinha reparado, mas o futuro elimina homens e mulheres das caixas de supermercado.
    futuramente o cliente que paga ainda vai ser operador de hipermercado, pagar para trabalhar.
    essas caixas já se encontram modestamente nos hipermercados, as quais eu me recuso a usar, mas que muita gente usa alegremente e ainda acha uma coisa boa
    inclusivamente desempregados que poderiam ter um emprego garantido como operadores de caixa remunerados em vez de serem empregados gratuitos das grandes cadeias

    podemos no entanto afirmar que essas caixas não fazem discriminação de género entre os clientes

    1. Esse facto que refere, do cliente trabalhar grátis para servir-se a si próprio, é já o que ocorre em todas as grandes superfícies no mundo (Zara, Ikea, Continente, Worten, Fnac, AKI) onde é ele próprio quem tem de ir à procura dos artigos que quer comprar (perdendo em média dezenas de minutos por compra), tem de sozinho ler os rótulos para informar-se sobre o conteúdo desses artigos (já que num raio de 50m não há nenhum funcionário a quem se possam fazer perguntas), tem de transportá-los num cesto ou num carrinho (mesmo que tenha mais de 80 anos ou alguma doença crónica que impeça a normal locomoção), tem de colocá-los sobre o tapete rolante da caixa e futuramente fará, como você refere, a respectiva conta/compra sozinho. Isto é o oposto do que ocorria no comércio dito tradicional, onde os funcionários eram quase sempre competentes e acompanhavam de muito perto o cliente em todo o processo da compra. O capitalismo fez esta magia (vejamos também o que se passa nos bancos onde o cliente faz a gestão de tudo a partir de casa e ainda paga comissões sem fim) de que ninguém fala que é pôr os consumidores a trabalhar grátis para… si próprios. Os consumidores são os trabalhadores do futuro. E o ‘tempo livre’ é o trabalho do futuro.

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