Capitalismo ético

A nova estratégia de legitimação do sistema

“We believe that creating lasting value means investing wisely and responsibly wherever we do business throughout the world. It means being a good corporate citizen and promoting practices that encourage social and environmental sustainability and strong corporate governance. Across six continents, we’re working to create not just stronger companies, but also better communities.” in: Annual Review do fundo de investimentos Carlyle Group

Poucos serão ainda capazes de negar que o capitalismo revolucionou as mais diversas esferas da existência. Uma por uma:

  • a sociedade – polarizada entre empreendedores de sucesso e precários miseráveis
  • cultura – formatada pelos industriais, das livrarias ao interior das salas de estar, passando pela roupa ou pelo vinho
  • a economia – que tornou supérfluo para o sistema quem não consegue já servir, como assalariado ou consumidor, o império empresarial dos bilionários que tudo monopolizam
  • a política – materializando um pensamento único, onde até a ‘esquerda radical’, subitamente convertida ao ‘realismo’, assume a defesa da ordem democrático-mercantil
  • a arte – ou melhor, a arte-mercadoria 
  • ciência – obediente ao mercado e à indústria, confundindo-se agora com a tecnologia – enquanto a pesquisa científica se confunde com a pesquisa industrial e a busca de conhecimentos com a busca de lucros
  • o meio ambiente – tornado uma lixeira à escala planetária
  • o urbanismo – que transfere o centro das cidades para os novos pólos comerciais situados nas desoladoras paisagens da periferia, apenas acessíveis ao automóvel
  • o território – sintetizado numa gigantesca mercadoria para consumo turístico
  • a alimentação – poluída, falsificada, sem sabor

É neste quadro obsceno, a que jamais fazem referência os meios de informação – quadro que não é mais do que o retrato do poder ditatorial do capital -, que para as grandes empresas se tornou hoje imprescindível um investimento cosmético. E é deste investimento cosmético, em que rios de capital se investem para lavar a imagem das empresas, que nasce o capitalismo ético.

Dispostas a criar uma fachada humanitária para os seus controversos negócios, as grandes empresas apostam hoje fortemente naquilo a que a gíria empresarial chama de “social impact investing” e que a mesma gíria também designa por “social washing“. Elas buscam assim implementar acções com elevado grau de impacto social, capazes de lavar a sua imagem. Um empreendedor neste novo ramo da economia confessava há dias ao Le Monde: “Os assalariados [da Google] necessitam de saber que aquilo que fazem tem um sentido. Estão fartos de ouvir falar mal da sua empresa. O que se torna um travão ao recrutamento.”
Não por acaso, a Google acaba de inaugurar em San Francisco, numa parceria com outras empresas (como a eBay), um restaurante social, o Rendez Vous Café, onde simultaneamente “se come e se pratica o bem“. Comer bem significa aqui “comida biológica, local e fresca“. Quanto a praticar o bem, trata-se de apoiar os empregados, gente com dificuldades económicas mas a quem se pagam “livable wages” (o que quer que isso represente na sua carteira) e se tenta dar um emprego estável.
O capitalismo, que no seu estádio neoliberal faz explodir a irracionalidade, a miséria e a exclusão a níveis inimagináveis, apresenta-se agora ao conjunto da sociedade como um sistema responsável e justo, dominado por valores éticos. E não faltam os exemplos, outros exemplos: no Starbucks tomas um café ético e ajudas agricultores na Colômbia e na Etiópia, na estrada aceleras no green car da Volkswagen e assim reduzes as emissões de carbono e no tempo livre saboreias um chocolate Nestlé de “cacau sustentável” certificado pela Fairtrade. 
E pouco importa que o Starbucks seja contra a formação de sindicatos, que a Volkswagen falsifique os níveis de emissões de gases e que a Nestlé aprove a existência de trabalho escravo infantil nas plantações de cacau. O importante é acreditarmos nas boas intenções das multinacionais e na sua palavra fetiche que é agora ‘sustentabilidade’, verdadeiramente a palavra fetiche do nosso tempo – é sintomático que, googlando a palavra ‘sustainable’, nos deparamos com 207.000.000 de entradas (contra 144.000.000 de outra das palavras fetiche desta época, ‘democracy’, e apenas suplantado pelas 239.000.000 de entradas da outra palavra-chave do momento, ‘terror’)…
Até o fundo de investimento mais sinistro e poderoso da história do capitalismo, com ramificações muito profundas a toda a mafiosa entourage da família Bush e de Frank Carlucci, o obscuro Grupo Carlyle, achou estrategicamente necessário adoptar as ‘boas práticas’ do que hoje se chama capitalismo responsável (“responsible capitalism“). O grupo passou assim a investir, por exemplo, em pesca sustentável na China. Alan Holt, executivo deste grupo de gangsters profissionais, sintetizava deste modo a posição do grupo: “simply put, we believe that financial performance and environmental improvements are complementary and they are in the best interests of our portfolio companies and our investors.” Esta posição é igualmente assumida num Annual Review recente do grupo: “Our new approach also demonstrates that responsible investing and environmental stewardship have become integral elements of how we invest and conduct our business. (…) Across six continents, we’re working to create not just stronger companies, but also better communities.”
Todos sabemos que o único móbil comum às empresas que dominam a economia mundial é a multiplicação de capital. Ninguém investe numa dessas empresas com outra motivação. Mas este móbil tem de ser religiosamente escondido aos assalariados e consumidores, a quem se faz sentir que estão, não a dar o seu contributo para a acumulação de capital nas mãos de bilionários e hedge funders asquerosos, mas sim a praticar o Bem. Trabalhar e comprar estão pois em vias de se converter em atitudes éticas – e não meramente económicas.

Esta inversão em curso na consciência colectiva é um dado fundamental para se conseguir explicar como é possível ao capitalismo, apesar de todos os escândalos em que surge constantemente implicado, continuar a legitimar-se  e a reproduzir-se pacificamente em 2015 – e, com ele, o mundo anti-humano em que vivemos, desenhado menos para ser apropriado pelas pessoas do que por capital anónimo.

About PDuarte

Historiador, jardineiro, horticultor. Vive na província. No tempo vago, que procura multiplicar de dia para dia, perde-se em viagens, algumas pelos montes em redor, outras pelos livros que sempre o acompanham. Prefere o vinho à blogosfera, a blogosfera ao Parlamento.

4 opiniões sobre “Capitalismo ético

  1. Excelente texto, mais um, que me vai fazer continuar a regressar a este blog.
    Mas felizmente que as coisas nunca duram para sempre, e quando eventualmente o capitalismo provocar a 3ª guerra mundial, tudo isso deixará de existir. Desde essas empresas, ao euro, a união europeia, a nato, a onu etc.
    Cada vez menos tenho dúvidas que estamos a caminhar para isso, e há demasiadas semelhanças entre os nossos dias e o periodo que se viveu na europa entre 1890 e 1914.

  2. E no limiar de mais uma crise do capital, dando fé ao prognóstico dos analistas, o capitalismo joga mais uma cartada, uma cartada decisiva para levar as ovelhas a amar os lobos. Bom resumo da nova fase da manha.

  3. Boas! Vou então despejar uma ideia…

    A realidade, despida de ilusões capitalistas e democráticas, é que o animal humano que habita nas regiões do planeta que mais recursos consomem, e consequentemente são os principais responsáveis pelas destruição de vastos ecossistemas, utiliza estas formas de slogans como anestésico para os seus actos, isto pelo menos aqueles que têm uma pequena noção dos prejuízos que os seus actos diários provocam!

    A realidade é que a maioria nem sequer está ciente disto, e olha para estes slogans como algo divertido para se fazer – tipo ir a uma colour run – mas apenas se não causar muito transtorno, seja físico e especialmente financeiro!

    Já quanto à hilariante propaganda do “café ético”… Fica mesmo por aí!

    A degeneração dos animais humanos é algo inevitável… No meu espaço virtual de devaneio, já nem sequer uso a palavra “humano”, já a substitui pela que melhor reflete a realidade que observo… Somos animais Umanos!

    Continuação…

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