Apresentação da obra ‘Dinheiro sem valor – linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política’, de Robert Kurz

imagemAlguns aspectos inovadores desta obra, publicada na Alemanha em 2012 e impecavelmente traduzida para português pela Antígona, são muitíssimo bem analisados por Anselm Jappe numa passagem do seu livro ‘Conferências de Lisboa’ (Antígona, 2013). Deixo-vos esse excerto (os sublinhados são meus) como aperitivo para partirem para a exploração da obra fecunda e essencial de Robert Kurz, à qual necessariamente iremos voltar neste blog.


“Esse livro, publicado poucos dias após a morte do autor, em Julho de 2012, prossegue a elaboração anterior da sua teoria, mas aprofunda e radicaliza certos aspectos. Pode-se reter dois, em especial.

Antes de mais, uma crítica muito clara do ‘individualismo metodológico’. Kurz vê nele a quintessência do pensamento burguês, que caracteriza não só a teoria económica burguesa, mas também a tradição marxista. O pensamento do próprio Marx nem sempre era isento, o que explica muitas das suas contradições e hesitações. O individualismo metodológico vê no todo apenas uma soma de elementos particulares, analisados isoladamente. Do mesmo modo que procura explicar a sociedade a partir da estrutura de um indivíduo em particular – sobreavaliando, portanto, o ponto de vista do autor -, o individualismo metodológico assenta a sua explicação do capitalismo no capital particular: não é necessariamente um capital empírico; pode, em vez disso, tratar-se de um ‘modelo’. Mas toma-o sempre naquilo que ele é antes de voltar a relacionar-se com os outros capitais. As conexões mais complexas são vistas, pois, como simples reprodução, numa escala alargada, da mesma estrutura particular. Kurz defende que Marx, no primeiro volume d’O Capital, onde analisa um capital ideal-típico, se mantém ainda largamente neste esquema. Porém, questões como a determinação do carácter produtivo ou não produtivo de um dado capital não podem ser decididas – continua Kurz – por meio de uma análise da sua estrutura interna, mas tão-só considerando o lugar que ocupa no processo global do capital. Uma mercadoria específica tem um preço individual, mas não um valor individual. O valor existe como valor global, produzido pelo conjunto dos trabalhos produtivos (de capital), distribuindo-se depois, segundo os mecanismos da concorrência, pelas mercadorias e pelos capitais particulares. Esta abordagem, que analisa o capital particular essencialmente como parte alíquota do capital global, permite resolver diversos problemas teóricos há muito debatidos pelos marxistas, como seja a transformação dos valores em preço (que, segundo Kurz, é um falso problema). E permite, também, sublinhar que o valor nasce na produção e não na circulação. Este assunto assumiu sempre uma grande importância na argumentação de Kurz.

Todas estas considerações podem parecer muito técnicas, mas na verdade conduzem ao âmago da temática do fetichismo e têm importância para a questão sobre como superar o capitalismo. Isto é igualmente válido para o segundo eixo do livro: a prioridade histórica do dinheiro sobre o valor. Segundo uma concepção muito difundida, quer no campo da burguesia quer entre os marxistas, e que encontra suporte no próprio Marx (que manteve sempre uma ambiguidade acerca deste ponto), o dinheiro, o valor e o trabalho que cria o valor existem há milénios e são quase ‘naturais’. Terão existido durante a Antiguidade e a Idade Média como ‘nichos’, e terá sido a importância muito maior atribuída ao papel assumido pelo dinheiro a partir do século XV que levou a um ‘salto qualitativo’ do valor, accionando o capitalismo. O problema – e isto tem consequências políticas, como é evidente – não estaria, pois, na existência do trabalho abstracto e do valor, mas tão só na sua‘perversão’ por causa do dinheiro quando este se acumula. Kurz deita por terra esta argumentação: o valor – o facto de avaliar as actividades humanas, independentemente do seu conteúdo, em função de um único critério: o gasto de energia medida pelo tempo – não é eterno, mas especificamente capitalista.

O dinheiro, em contrapartida, tem uma história muito mais longa – mas o dinheiro pré-capitalista preenchia essencialmente uma função sacra, ritual, resultante do sacrifício e da dádiva. Não servia para medir um valor criado pelo trabalho. Pensar que entre os antigos, ou na Idade Média, ele desempenhava o mesmo papel que desempenha na sociedade capitalista moderna é um anacronismo típico do individualismo metodológico actual. Pelo contrário, tratava-se de um ‘dinheiro sem valor’. Para o demonstrar, Kurz recorre a historiadores como Jacques Le Goff e a antropólogos como Marcel Mauss, abrindo assim a possibilidade de um ‘diálogo’ com autores até agora pouco tidos em conta pela crítica do valor. Foi em consequência da ‘revolução militar’, ela mesma causada pela difusão das armas de fogo no século XV, que o dinheiro perdeu o seu papel sacro, que o limitava a certas funções, para se tornar a mediação central da reprodução material da sociedade e, por fim, de toda a vida social. Mas Kurz demonstra igualmente que a substituição do trabalho vivo, fonte única do valor, pelas tecnologias – a qual acompanhou toda a história do capitalismo – tem como resultado uma diminuição da massa global de valor. A massa constantemente acrescida de dinheiro circulante deixa de corresponder à massa de valor, que, por seu turno, diminui. Assiste-se então a uma ‘desvalorização’ do dinheiro e a um regresso do ‘dinheiro sem valor’ – mas agora no quadro de um processo geral de descivilização e de barbarização.”

Anselm Jappe, 2013

About PDuarte

Historiador, jardineiro, horticultor. Vive na província. No tempo vago, que procura multiplicar de dia para dia, perde-se em viagens, algumas pelos montes em redor, outras pelos livros que sempre o acompanham. Prefere o vinho à blogosfera, a blogosfera ao Parlamento.

5 opiniões sobre “Apresentação da obra ‘Dinheiro sem valor – linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política’, de Robert Kurz

  1. Embora ainda não tendo lido a obra (espero fazê-lo em breve), há um ponto que me parece bastante controverso. Trata-se de asseverar que o valor é construído apenas na produção e não na circulação. Qualquer análise elementar mostra a importância decisiva de ambos, talvez até em muitos casos do segundo vector sobre o primeiro. Mais. Essa hipótese ignora a construção de valor sobre artigos não produzidos ou não resultantes do trabalho humano. Em muitos casos, especialmente nos dias de hoje, assistimos a apreciações e depreciações de valor que nada têm a ver com o factor trabalho, mas sim com uma série de circunstâncias geralmente a juzante e menos a montante da produção. Isto para já nem mencionar a indústria de bens e serviços que prospera através da valorização/desvalorização automática de activos bolsistas onde o factor trabalho praticamente não existe ou é tão ínfimo que pode ser ignorado. Trata-se do high-speed trading, por exemplo. E que dizer dos produtos que ficam por vender? O seu valor tende para zero, seja qual for o factor trabalho neles envolvido.
    Há portanto, sérias objecções a essa hipótese. Estas são apenas algumas.
    ZM

    1. Obrigado pelo comentário. Sim é de facto um ponto controverso. No entanto, creio que Kurz apenas estabelece um primado da produção sobre a circulação na constituição do valor das mercadorias. Trata-se de um primado que, pontualmente, poderá conhecer as suas excepções (algumas das quais o próprio Kurz prevê na sua argumentação). Nesta obra dedica dois capítulos ao assunto que merecem uma leitura muito atenta.

    2. Você ainda tem uma visão positivista do valor.
      Uma visão ricardiana
      O valor, na crítica de Kurz, não pode ser estabelecido como “joão trabalha 6 horas e recebe por 1”
      Ele não é individual e sim uma massa.
      Não interessa se existem atividades sem trabalho, nem se a produção é feita por máquinas em algumas etapas.

  2. Reificação da tecnologia,apagamento do sujeito revolucionário, negação do trabalho [a libertação do trabalho e já não dos trabalhadores]: a reificação do próprio capitalismo e a sua negação simbólica deixam os trabalhadores desarmados na luta de classes que é negada:desaparecem a teoria do valor trabalho, a mais-valia e a exploração,reaparecem a dádiva e a reciprocidade como categorias a-históricas….

  3. Eu estou gostando muito do livro. É mais uma evidência do abismo que se abriu na crítica com o passamento precoce deste gênio. No entanto cumpre ressaltar que o retraimento acadêmico de Kurz ( justificado é bem verdade) acaba por deixar a sua marca não no conteúdo (ainda bem) mas na forma do esoterismo crítico radical com que ele se expressa.

    Faltou uma revisão ( ou a tradução para o português dá a entender isto) que colocasse algumas expressões no âmbito da terminologia científica , por pior e por mais iluminista-instrumental-fetichista que esse domínio seja porque não dá para expressar nada por mais revolucionário que seja em um linguajar estranho à cultura corrente porque é esta com que se tenta dialogar, argumentar, esclarecer , contribuir, desmistificar, reorientar.

    Assim por exemplo Kurz fala muito em “lógica” quando se refere à uma teoria econômica formal que pudesse ser considerada universal e em “histórico” quando se refere à investigação histórica dos acontecimentos passados que poderiam trazer as marcas da primeira sem anacronismos em sua interpretação. Pior ainda é falar em “lógica da exposição” quando se refere à construção argumentativa do próprio Marx. O abuso do termo “categoria” ( vagando de idiosincracia à ideologia) é um vício de argumentação e estilo que confunde e aborrece o leitor.

    Muitos outros casos existem tornando a obra obscura, quase restrita aos iniciados no linguajar próprio de uma determinada irmandade.

    Ainda assim vale a compra e o esforço da leitura.

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