“Quatre Heures à Chatila”, por Jean Genet

NOTA INTRODUTÓRIA: A nós não nos interessa saber se Israel, Ariel Sharon (Ministro da Defesa na altura) ou o IDF (Israel Defense Forces) deram ordens explícitas e escritas para a Falange Libanesa e o Exército do Sul do Líbano cometerem os actos de genocídio que foram os massacres nos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila, entre 16 e 18 de Setembro de 1982, nem nos interessa discutir as diferenças (que são políticas, e de que maneira!) de ou entre “ordem israelita para matar”, “responsabilidade” (directa ou indirecta) ou “cumplicidade”. Para nós Sabra e Chatila é um dos retratos de Israel. Para sempre e definitivo. A palavra agora é de JEAN GENET.*

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“Em Sabra e Chatila, não-judeus massacraram não judeus, e o que é que isso nos interessa?”

Menachem Begin (Primeiro-ministro de Israel, Parlamento, Setembro, 1982)

PARTE 1

Ninguém, nada, nenhuma narrativa técnica, é capaz de colocar em palavras os seis meses, e especialmente as primeiras semanas, em que os fedayin passaram nas montanhas de Jerash e Ajloun na Jordânia. Dar conta de relatar os acontecimentos, estabelecendo uma cronologia, os sucessos e fracassos da OLP, outros já o fizeram.

O sentimento no ar, a cor do céu, da terra, das árvores, isto pode ser descrito; mas nunca a intoxicação subtil, a leveza das pegadas tocando suavemente a terra, o brilho dos olhos, a franqueza nas relações não apenas entre os fedayin mas também entre eles e seus líderes. Debaixo da sombra das árvores, tudo, todos estavam excitados, rindo, repletos de admiração pela vida, tão nova para todos, e nesta vibração havia algo estranhamente estático, alerta, reservado, protegido como alguém que estivesse a fazer uma oração silenciosa. Tudo pertencia a todos. E todos estavam sozinhos consigo mesmos. Talvez não. No final de tudo, sorrindo e abatidos.

A região na Jordânia de onde eles haviam se retirado por razões políticas estendia-se desde a fronteira da Síria até Salt (uma pequena cidade próxima à fronteira da Síria), e era limitada pelo Rio Jordão e por uma estrada que liga Jerash a Irbid. Com 60 quilómetros de extensão e 20 de largura, esta região montanhosa era coberta por azinheiras, pequenas aldeias jordanas e plantações esparsas. Sob as árvores e tendas camufladas os fedayin estabeleceram unidades de combate e instalaram luzes e armas semi-pesadas. A artilharia estava direccionada principalmente contra possíveis operações jordanas, os jovens soldados cuidavam das suas armas, desmontando-as para as limpar e lubrificar, remontando-as rapidamente em seguida. Alguns soldados conseguiam desmontar e remontar suas armas com os olhos vendados para que assim fossem capazes de realizar esta tarefa à noite. Entre cada soldado e a sua arma desenvolvia-se um vinculo de amor e de encantamento. Como os fedayin já tinham deixado a adolescência para trás recentemente, a sua arma era o sinal de uma virilidade triunfante que lhe dava a garantia de existência. A agressividade desaparecia: e os dentes apareciam através do sorriso. No resto do tempo, os fedayin bebiam chá, criticavam os seus líderes e pessoas ricas, palestinianos e outros, insultavam Israel, e acima de tudo, falavam sobre a revolução, esta em que eles estavam envolvidos e aquela na qual eles estavam prestes a ingressar. Para mim, a palavra “palestinianos”; se estivesse numa manchete, no conteúdo de um artigo ou num comunicado; levava a minha mente imediatamente para os fedayin de um ponto específico – a Jordânia – e para uma data facilmente determinada: Outubro, Novembro, Dezembro de 1970, Janeiro, Fevereiro, Março, Abril de 1971. Foi onde e quando descobri a Revolução Palestiniana.

A evidência extraordinária do que estava a acontecer, a intensidade desta alegria de se estar vivo é também chamada de beleza. Dez anos passaram-se, e eu não ouvi nada sobre eles, excepto que os fedayin estavam no Líbano. A imprensa europeia citava esporadicamente, até mesmo com desdém, a respeito do povo palestiniano. Então, de repente, Beirute Ocidental.

* * *

Uma fotografia tem duas dimensões, assim como a tela da televisão; ninguém pode caminhar através da imagem. De uma parede da rua até a outra, dobrado ou arqueado, com os seus pés apoiados contra uma parede e as suas cabeças pressionando a outra, os corpos pretos e inchados sobre os quais eu tinha que passar era todos de palestinianos e libaneses. Para mim, como para o que restou da população, caminhar através de Chatila e Sabra assemelhava-se a um jogo da macaca. Algumas vezes uma criança morta bloqueava as ruas: elas eram tão pequenas, tão magras, e os mortos tão numerosos. Provavelmente o cheiro é familiar para as pessoas mais velhas; ele não me incomodava. Mas havia tantas moscas. Se eu levantasse o lenço ou o jornal árabe colocado sobre uma cabeça, eu as perturbaria. Enfurecidas por minha acção, elas cobririam a costa de minha mão tentando alimentar-se.

O primeiro cadáver que eu vi era o de um homem entre cinquenta e sessenta anos de idade. Ele teria cabelos brancos iluminados por uma ferida (feita por um machado, pareceu-me) não tivesse ele o seu crânio rachado em dois. Parte de seu cérebro enegrecido estava espalhado pelo chão, próximo da cabeça. O corpo estava estendido sobre uma poça de sangue escuro coagulado. O cinto estava aberto, um único botão segurava as suas calças. As pernas e os pés do homem morto estavam à mostra, enegrecidos, roxas e azuis; talvez ele tenha sido apanhado de surpresa durante a noite ou na madrugada. Estaria fugindo? Ele estava caído numa viela logo à direita da entrada para o campo de Shatfla, que fica no caminho da Embaixada do Kuwait. Será que o massacre de Chatila foi feito sorrateiramente ou em total silêncio, já que os israelitas, tanto soldados quanto oficiais, afirmam não ter ouvido nada, não ter suspeitado de nada enquanto ocupavam este edifício desde a tarde de quarta-feira? Uma fotografia não mostra as moscas nem o cheiro branco e denso da morte. Nem mesmo mostra como se deve saltar sobre os cadáveres enquanto se caminha entre um corpo e o outro. Se se olhar com cuidado para um cadáver, ocorre um fenómeno estranho: a ausência de vida no corpo corresponde à total ausência do próprio corpo, especialmente se recuarmos continuamente. Sente-se que mesmo chegando bem perto do corpo nunca conseguiremos tocá-lo. Isto acontece quando os olhamos com atenção. Mas se caminhamos na sua direcção, nos abaixamos próximo dele, movemos um braço ou um dedo, de repente percebemos que ele está lá, quase amigavelmente. Amor e morte. Estas duas palavras são rapidamente associadas quando um deles é descrito.

Eu tive que ir até Chatila para entender a obscenidade do amor e a obscenidade da morte. Nos dois casos um corpo não tem nada mais a esconder: posições, contorções, gestos, sinais, até mesmo os silêncios pertencem a um mundo e ao outro. O corpo de um homem de trinta a trinta e cinco estava deitado de bruços. Como se o corpo todo não fosse nada além de uma bexiga no formado de um homem, ele ficou tão inchado com o sol e com as substâncias da decomposição que suas calças estavam justas como se elas estivessem prestes a se rasgar nas nádegas e nas coxas. O único pedaço do rosto que eu consegui ver estava roxo e preto. Logo acima do joelho podia ver-se um ferimento profundo com o tecido rasgado. A causa do ferimento: uma baioneta, uma faca, uma catana? Moscas sobre a ferida e ao redor dela. A sua cabeça estava maior do que uma melancia, uma melancia preta. Eu perguntei o seu nome; ele era um muçulmano.

– “Quem é este?” “Um palestiniano”, respondeu em francês um homem de uns quarenta anos. “Veja o que eles fizeram”. Ele puxou o cobertor que cobria os pés e parte das pernas. As pernas estavam nuas, pretas e inchadas. Os pés, em botas de exército preta desamarradas, e os tornozelos dos dois pés estavam fortemente amarrados juntos por um nó com uma corda forte – a sua resistência era evidente – de uns 3 metros de comprimento, que recompus para que a Sra. S. (uma americana) pudesse tirar uma boa fotografia dele. Eu perguntei para o homem de quarenta anos seu eu poderia ver o rosto do homem morto.

– “Se você quiser, mas olhe você mesmo.”

– “Ajuda-me a virar a cabeça dele?”

– “Não.”

– “Eles arrastaram este homem pela rua com esta corda?”

– “Eu não sei, senhor.”

– “Quem o amarrou?”

– “Eu não sei, senhor.”

– “Um dos homens do Haddad?”

– “Eu não sei.”

– “Os israelitas?”

– “Eu não sei.”

– “Os Kataeb?”

– “Eu não sei.”

– “Você o conhecia?”

– “Sim.”

– “Você o viu morrer?”

– “Sim.”

– “Quem o matou?”

– “Eu não sei.”

Ele caminhava rapidamente entre o homem morto e eu. Foi até mais adiante, olhou para trás e desapareceu numa rua lateral. Por qual viela iria eu agora? Eu fiquei indeciso entre um homem de cinquenta anos de idade, um jovem de vinte, duas senhoras árabes, senti-me como se fosse o centro de um compasso cujos quadrantes continham centenas de mortos. Eu fiz estas anotações, sem saber exactamente porquê, neste ponto da minha narrativa: “Os franceses tem o hábito de usar a infeliz expressão ‘trabalho sujo’. Bem, assim como o exército israelita ordenou aos Kataeb ou aos Haddaists para fazerem seu ‘trabalho sujo’, o Partido dos Trabalhadores teve seu ‘trabalho sujo’ feito por Likud, Begin, Sharon, Shamir”. Eu apenas constatei R., um jornalista palestiniano que ainda estava em Beirute no domingo, dia 19 de Setembro. No meio de tudo, próximo a eles, de todas estas vítimas torturadas, a minha mente não conseguia livrar-se desta “visão imperceptível”: Como seria o torturador? Quem foi ele? Eu vi-o e eu não o vi. Ele é tão grande quanto a vida e a única forma que ele terá e é composta pelas posturas, posições e gestos grotescos dos corpos fermentando no sol debaixo de nuvens de moscas. Se os fuzileiros americanos, os para-quedistas franceses, e os bersagliere italianos inventaram uma intervenção de força no Líbano e foram embora rapidamente (os italianos, que chegaram de navio dois dias atrasados, mas voltaram em aviões Hercules!) um dia ou trinta e seis horas antes da data oficial de sua saída, como se estivessem a fugir, e um dia antes do assassinato de Bashir Gemayel, os palestinianos estão realmente errados ao questionarem se americanos, franceses e italianos não foram avisados para saírem imediatamente e para não se misturarem ao bombardeamento dos quartéis generais dos Kataeb?

Eles saíram rapidamente e muito cedo. Israel vangloria-se e ostenta a sua eficácia em combate, a sua preparação para batalhas, a sua habilidade em transformar as circunstâncias a sua favor, em criar circunstâncias. Vejamos; a OLP deixa Beirute em triunfo, num navio grego, com uma escolta naval. Bashir, escondendo-se tão bem quanto pode, visita Begin em Israel. A intervenção dos três exércitos (americano, francês, italiano) é concluída na segunda-feira. Na terça-feira, Bashir é assassinado. A Tsahal entra em Beirute Ocidental na manhã de quarta-feira. Como se estivessem vindo do cais, os soldados israelitas avançaram sobre Beirute na manhã do funeral de Bashir. Com binóculos, do oitavo andar do edifício onde eu estava, eu vi-os chegar em fila indiana: uma coluna. Eu fiquei surpreso que nada mais tivesse acontecido, porque com uma boa espingarda com mira eles poderiam ter sido alvejados um a um. A sua brutalidade os antecedeu. Os tanques vieram logo depois. E depois os carros. Cansado por uma marcha matinal tão longa, eles pararam próximos da embaixada francesa, deixando os tanques seguirem à sua frente, entrando directamente pela Hamra. Os soldados sentaram-se em intervalos de 10 metros encostados nas paredes da embaixada, com as suas espingardas apontadas para a frente. Com seus ombros largos eles pareciam serpentes com as duas pernas esticadas à frente. “Israel havia prometido ao representante americano de Habib que não poria os pés em Beirute Ocidental e especialmente que respeitaria a população civil dos campos palestinianos. Arafat ainda possui a carta na qual Reagan fez a mesma promessa. Habib supostamente prometeu a Arafat que novecentos prisioneiros em Israel seriam libertados. Na quinta-feira o massacre em Chatila e Sabra começa. O ‘banho de sangue’ que Israel alegou que impediria restaurar a ordem nos campos…” disse-me um escritor libanês.

“Será muito fácil para Israel livrar-se de todas as acusações. Jornalistas de toda a imprensa europeia já estão a trabalhar para lhes lavar as mãos: nenhum dirá que nas noites de quinta para sexta-feira e de sexta para sábado o hebraico foi falado em Chatila”. Isto foi o que outro libanês me disse. Uma mulher palestiniana – pois eu não poderia deixar Chatila passando de um cadáver para outro neste jeu de l’oie (jogo de tabuleiro em espiral com perguntas e respostas) que inevitavelmente terminaria neste milagre: Chatila e Sabra foram arrasados e a batalha para reconstruir os edifícios sobre este cemitério – a mulher palestiniana era provavelmente idosa pois os seus cabelos eram grisalhos. Ela estava deitada de costas, colocada ou deixada sobre os escombros, os tijolos, as barras de ferro retorcidos, sem conforto. Primeiramente eu fiquei surpreso com as tranças estranhas feitas de cordas e roupas que iam de um ombro ao outro, mantendo os dois braços abertos horizontalmente, como se estivesse crucificada. O seu rosto preto e inchado, voltado para o céu, mostrava uma boca aberta, escurecida pelas moscas, e os dentes que pareciam muito brancos para mim, um rosto que parecia, sem mover um músculo sequer, forçar um riso ou sorrindo ou mesmo gritando num gemido silencioso e contínuo. Suas meias eram de lã preta e o seu vestido de flores rosa e cinza, um pouco levantado ou muito curto, eu não sei bem, revelavam a parte superior das pernas pretas e inchadas, novamente com um colorido roxo delicado com um violeta e roxo parecido nas bochechas. Seriam contusões ou o resultado natural do apodrecimento ao sol?  – “Eles bateram nela com a coronha da espingarda?” – “Veja, senhor, olhe as mãos dela.” Eu não tinha notado. Os dedos das duas mãos estavam espalhados, os dez dedos haviam sido cortados com uma tesoura de jardinagem. Soldados, rindo como crianças e cantando alegremente, provavelmente tinham-se divertido ao descobrirem e ao usarem estas tesouras. – “Veja senhor”. As pontas dos dedos, as últimas articulações, com as unhas, jogadas na poeira. O jovem, que estava simples e naturalmente a mostrar como a morta havia sido torturada, calmamente colocou o tecido de volta sobre o rosto e as mãos da mulher palestiniana, e um pedaço de papelão ondulado sobre suas pernas. Tudo o que eu conseguia distinguir agora era um monte de tecido rosa e cinza, com uma nuvem de moscas a pairar sobre ele. Três jovens acompanharam-me para dentro de um beco. – “Entre ai, sente-se, nós esperaremos por si lá fora.” A primeira sala era o que restava de uma casa de dois andares. O espaço dava uma impressão de serenidade e simpatia, de quase alegria; talvez uma alegria real que havia sido criada pelos objectos abandonados por outras pessoas, objectos que haviam sobrevivido naquele pedaço de paredes destruídas, onde eu primeiramente pensei que fossem três poltronas, na realidade três bancos de carro (talvez de um Mercedes de algum ferro-velho), um sofá com almofadas cobertas com um material florido berrante com desenhos estilizados, um rádio pequeno e silencioso, dois candelabros apagados. Uma sala bastante calma, apesar do tapete de conchas gastas. A porta balançou, como se houvesse um vento forte. Eu caminhei sobre as conchas gastas e empurrei a porta que se abriu em direcção à outra sala, mas eu tive que empurrar com força: o salto de uma bota bloqueava o caminho, o calcanhar de um corpo deitado de costas, próximo a dois outros corpos de homens deitados de bruços, todos eles descansando sobre outro tapete de conchas gastas. Eu quase cai várias vezes por causa deles. Atrás desta sala outra porta estava aberta, sem qualquer cadeado. Eu caminhei sobre os corpos como alguém cruza um abismo. A sala guardava os corpos de quatro homens, empilhados um por cima do outro sobre uma cama de solteiro, como se cada um tivesse tido o cuidado de proteger o que estava debaixo de si, ou como se eles tivessem sido apanhados em uma orgia decadente. Esta pilha de escudos tinham um cheiro forte, mas não cheiravam mal. O cheiro e as moscas tinham eram já familiares. Eu não perturbava mais nada nestas ruínas, nesta quietude.

Durante a noite de quinta para sexta-feira, e durante as de sexta para sábado e sábado para domingo ninguém manteve vigília sobre eles, pensei eu. Ainda assim, parecia-me que alguém havia visitado estes homens mortos antes de mim e após a morte deles. Os três jovens estavam à espera bem longe da casa com lenços sobre os seus narizes. Foi então, enquanto eu estava a sair da casa, que eu tive um ataque súbito de uma leve loucura que quase me fez sorrir. Eu pensei comigo mesmo que nunca haveria madeira ou carpinteiros suficientes para fazer os caixões. Mas também, porque precisariam eles de caixões? Os homens e mulheres mortos eram todos muçulmanos, que são costurados em mortalhas no enterro. Quantos metros seriam necessários para embalar tantos corpos? E quantos padres? O que mais estava a faltar aqui, eu dei por mim, era a harmonia das rezas. – “Vamos, senhor, rápido”. Era o instante de notar que esta súbita e silenciosa loucura momentânea que me fez contar metros de tecido branco deu aos meus passos uma quase vitalidade refrescante, e isto deve ter sido causado por um comentário que eu ouvi de uma amiga palestiniana no dia anterior. – “Eu estava à espera que eles me trouxessem as minhas chaves (quais chaves: do carro dela, de sua casa, tudo o que eu sei agora é da palavra chaves) quando um velho entrou a correr. ‘Para onde você vai?’ ‘Conseguir ajuda. Eu sou o coveiro. Eles bombardearam o cemitério. Todos os ossos estão descobertos. Eu preciso de ajuda para recolher os ossos'”. Esta amiga é cristã, eu acho. Ela continuou: – “Quando a bomba de vácuo, chamada de bomba de implosão, matou duzentas e cinquenta pessoas, nós tínhamos apenas uma caixa. Os homens cavaram uma vala colectiva no cemitério da Igreja Ortodoxa. Nós enchíamos a caixa, e a levávamos para esvaziá-la. Nós fomos e voltamos sob bombardeamento, recolhendo os corpos e membros o melhor que pudemos”.

Nos três meses seguintes, as mãos tiveram uma função dupla: durante o dia para pegar e tocar, à noite, para ver. Cortes de electricidade fizeram esta “escola para cegos” necessária, como fazíamos a escalada, duas ou três vezes ao dia, daquele penhasco de mármore branco, a escada de oito andares. Nós tínhamos que encher todos os recipientes da casa com água. O telefone foi cortado quando os soldados israelitas entraram em Beirute Ocidental junto com as suas inscrições em hebraico. Assim estavam as estradas ao redor de Beirute. Os tanques Merkava que nunca paravam mostravam que eles estavam com os olhos sobre toda a cidade, e ao mesmo tempo alguém podia imaginar o medo de quem estava lá dentro de tornar-se um alvo fixo. Eles sem sombra de dúvida temiam a actividade dos Murabitoun e dos fedayin que poderiam continuar nas secções de Beirute Ocidental. No dia seguinte à entrada do exército israelita nós estávamos prisioneiros, mas parecia-me que os invasores eram menos temidos do que desdenhados, eles causavam menos medo do que repulsa. Nenhum soldado ficava a rir ou a sorrir. Nenhum atirou arroz ou flores. O pai de Bashir Gemayel apareceu na televisão libanesa, rosto fino com sobrancelhas arqueadas e cheia de sombras, e lábios muito finos. A única expressão: crueldade nua. Desde que as estradas foram bloqueadas e o telefone estava mudo, desprovido de contacto com o resto do mundo, pela primeira vez na minha vida, eu senti como se tivesse me tornado um palestiniano e odiei Israel. No Estádio de Desportos, próximo à estrada Beirute-Damasco, que já estava quase completamente destruída pelo bombardeamento aéreo, os libaneses abandonavam pilhas de armamentos, todos supostamente destruídos voluntariamente, para os oficiais israelitas. No apartamento em que eu estava hospedado, todos tinham um rádio. Nós ouvíamos a Radio-Kataeb, Radio-Murabitoun, Radio-Amman, Radio-Jerusalém (em francês), Radio-Líbano. Provavelmente todos estavam a fazer a mesma coisa em cada apartamento. “Nós estamos ligados a Israel por muitos vínculos que nos trazem bombas, tanques, soldados, frutas, vegetais; eles levam os nossos soldados embora, as nossas crianças para a Palestina, num contínuo e incessante ir e vir, pois de acordo com eles, nos estamos ligados a eles desde Abraão, na sua linhagem, na sua linguagem, nas mesmas origens…” (Um fedai palestino). “Em resumo,” ele acrescenta, “eles invadem-nos, eles entulham-nos, sufocam-nos e gostariam de nos abraçar. Eles dizem que são os nossos primos. Eles estão muito tristes por nos ver a preferir manter a distância. Eles devem estar furiosos connosco e com eles mesmos”.

* * *

A afirmação de que existe uma beleza peculiar aos revolucionários levanta muitos problemas. Todo o mundo sabe, todo o mundo suspeita, que crianças pequenas ou adolescentes que vivem em ambientes velhos e rudes tem um rosto bonito, corpo, movimento e olhar semelhante à de um fedayin. Talvez isto possa ser explicado da seguinte maneira: ao romper com estruturas tradicionais, um nova liberdade surge através da pele morta, e pais e avós terão dificuldade para extinguir o brilho nos olhos, a pulsação nos templos, o prazer do sangue fluindo pelas veias. Na primavera de 1971, nas bases palestinianas, esta beleza subtilmente impregnou uma floresta trazida à vida pela liberdade dos fedayin. Nos campos, uma beleza diferente, mais tranquila prevaleceu por causa da presença de mulheres e crianças. Os campos receberam uma certa iluminação das bases de combate, e também para as mulheres, isto levaria a uma discussão longa e complexa que explicasse este brilho. Mais do que os homens, mais do que os fedayin em combate, as mulheres palestinianas pareciam ser fortes o suficiente para sustentar a resistência e aceitar as mudanças que vieram junto com a revolução. Elas já tinham desobedecido aos costumes: elas olhavam os homens directamente nos olhos, elas recusavam-se a usar o véu, os seus cabelos eram visíveis, algumas vezes completamente descobertos, suas vozes eram firmes. A mais simples e mais quotidiana de suas tarefas era bem mais que um pequeno passo em sua jornada de auto-afirmação em direcção a uma nova, e no entanto desconhecida, ordem, a qual lhes dava a pista de uma libertação purificadora para elas mesmas, e um orgulho crescente para os homens. Elas estavam prontas para se tornarem tanto as esposas quanto as mães de heróis, assim como elas já o eram para os seus homens. Na floresta de Ajloun, os fedayin talvez estivessem sonhando com mulheres como estas, especialmente, cada um invocava ou imaginava uma mulher deitada a seu lado, a partir de então a graciosidade particular, a força – com seu riso divertido – de um fedayin armado. Nós não estávamos apenas no amanhecer da pré-revolução mas num marasmo sensual. Uma camada fina cristalizava-se dando uma gentileza a cada acção.

Constantemente, e todos os dias por um mês, sempre em Ajloun, eu via uma mulher magra porém forte agachada no frio, agachada como os indígenas andinos ou certos africanos negros, os intocáveis de Tóquio, os Tziganes do mercado, pronta para uma retirada rápida em caso de perigo, debaixo das árvores em frente ao quartel dos soldados, uma pequena e permanente estrutura erguida rapidamente. Ela esperava descalça no seu vestido preto enfeitado com fitas na bainha e na borda das mangas. Seu rosto era sério mas não mal-humorado, cansado mas não esgotado. O líder dos soldados estaria-se a preparar num quarto vazio ali perto, e então ele lhe daria um sinal. Ela entraria no quarto, fechando a porta, mas sem trancá-la. Então ela sairia, sem uma palavra sequer ou um sorriso, e descalça e imponente, retornaria para Jerash e para o campo em Baq. Eu descobri que no quarto reservado para ela no quartel dos soldados ela tirava as suas duas saias pretas, removia os envelopes e as cartas costuradas dentro delas, fazia um maço com elas e batia uma vez na porta. Entregando as cartas para o líder ela sairia e iria embora sem dizer uma palavra sequer. Ela voltaria no dia seguinte.

Outras mulheres velhas soltaram uma gargalhada por causa de uma casa que tinha apenas três pedras enegrecidas as quais, em Jebel Hussein (Amman), elas alegremente se referiam como a “nossa casa”. Elas mostraram-me as três pedras, e algumas vezes com brasas ardentes, e com vozes infantis, rindo e dizendo: “darna”. Estas mulheres idosas não pertenciam nem à revolução nem à resistência palestiniana: era um riso de quem havia perdido toda esperança. A sol acima delas continuava a sua jornada. Um braço ou um dedo estendido criava uma sombra cada vez mais fina. Mas e a terra? Jordânia, em parte uma ficção administrativa e política criada pela França, Inglaterra, Turquia, América… Um riso que perdeu toda a esperança, “mais alegre pois é o mais desesperado”. Elas ainda viram uma Palestina que não mais existia quando elas tinham dezesseis anos, mas então eles tinham uma terra. Elas não estavam nem abaixo nem acima dela, mas num espaço incomodo onde qualquer movimento estava errado. Abaixo dos pés descalços destas octogenárias e elegantes tragediennes estava na terra sólida? Isto era cada vez menos verdade. Depois de terem escapado de Hebron sob a ameaça israelita a terra aqui parecia sólida, todos estavam alegres e moviam-se sensualmente no idioma árabe. Com o passar do tempo a terra pareceu experimentar isto: os palestinianos eram cada vez menos suportáveis ao mesmo tempo que estes mesmos palestinianos, estes fazendeiros ignorantes, estavam a descobrir o movimento, caminhando, correndo, o prazer de ideias compartilhadas quase todos dias como cartas de baralho, as armas montadas, desmontadas e usadas. Cada uma das mulheres tinha a sua vez de falar. Elas estavam a rir. Uma delas relatou: – “Heróis! Que piada! Eu pari e bati em cinco ou seis deles que estão em Jebel. Eu limpei-lhes o rabo. Eu sei do que eles são feitos, e eu posso fazer mais alguns”. No céu ainda azul o sol continuava a sua jornada, mas ainda estava quente. Estas actrizes trágicas lembravam-se e imaginavam ao mesmo tempo. Para enfatizar o que elas diziam elas apontavam o dedo no fim da sentença e tencionavam as consoantes enfaticamente. Se um soldado jordano aparecesse ele ficaria encantado: com o ritmo das sentenças redescobriria o ritmo das danças dos beduínos. Sem as sentenças, um soldado israelita, ao ver estas deusas, esvaziaria a sua automática nos seus crânios.

PARTE 2

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Aqui nas ruínas de Chatila nada foi deixado. Algumas poucas velhas silenciosas escondem-se apressadamente atrás de uma porta onde um tecido branco está pregado. Quanto aos fedayin bem jovens, eu encontrarei alguns em Damasco. Podemos escolher uma comunidade particular que não seja a de seu nascimento, entretanto ela nasceu no meio de um povo; esta escolha está baseada numa afinidade irracional, o que não quer dizer que a justiça não tenha nenhum papel nisto, mas esta justiça e toda a defesa desta comunidade existe por uma questão emocional – talvez intuitiva, sensual – uma atracção; eu sou francês, mas eu defendo os palestinianos automaticamente e com todo o meu coração. Eles estão certos porque eu os amo. Mas eu os amaria se a injustiça não os tivesse transformado num povo errante?

Quase todos os edifícios em Beirute foram atingidos, no que eles ainda chamam de Beirute Ocidental. Eles desfazem-se de diferentes formas: como uma massa espremida entre os dedos de um King Kong gigante, indiferente e voraz; outras vezes três ou quatro andares inclinam-se deliciosamente numa curva elegante, dando ao edifício um tipo de aspecto libanês. Se uma fachada está intacta, dê a volta na casa; as outras paredes estarão em pedaços. Se as quatro paredes estiverem de pé sem fendas, a bomba lançada pelo avião caiu no centro da casa e fez um buraco onde estava a escadaria ou o elevador. Em Beirute Ocidental, depois da chegada dos israelitas, S. disse-me: – “Já era noite; deviam ser umas sete horas. De repente ouviu-se um som alto clank, clank, clank. Todo o mundo, a minha irmã, o meu cunhado e eu corremos para as traseiras. A noite estava muito escura. E de vez em quando via-se como que raios de luz a menos de 100 metros de distância. Sabe-se que logo em frente à nossa casa existe uma espécie de posto de comando israelita: quatro tanques, uma casa ocupada por soldados, oficiais e policiais. Noite. E o barulho metálico aproximando-se. Os raios de luz; algumas tochas acesas. E quarenta ou cinquenta garotos entre doze e treze anos batendo ritmicamente em pequenas canecas, com uma pedra ou martelos ou algo assim. Eles estavam a gritar, entoando: La ilah illa Allah, la Kataeb wa la yahoud (Não há nenhum Deus além de Alá; nem para os Kataeb; nem para os Judeus.)”

  1. Disse-me: – “Quando você veio para Beirute e Damasco em 1928, Damasco estava destruída. O General Gouraud e as suas tropas, as artilharias marroquina e tunisina, deixaram Damasco a ferro e fogo. A quem os sírios acusaram?” Eu respondi: – “Os sírios acusaram a França pelo massacre e destruição de Damasco”. Ele disse: – “Nós culpamos Israel pelos massacres em Chatila e Sabra. Não culpamos apenas os Kataeb que os substituíram. Israel é o culpado por permitir duas companhias de Kataeb de entrarem nos campos e dar-lhes as ordens e encorajá-los por três dias e noites, de trazer-lhes comida e bebida, por iluminarem os campos à noite.” H. novamente, professor de História: – “Em 1917 o golpe de Abraão foi actualizado, se você preferir, Deus já era a prefiguração de Lord Balfour. Os judeus costumavam dizer e ainda dizem que Deus prometeu a Abraão e aos seus descendentes uma terra de leite e mel. Mas esta terra, que não pertence ao Deus dos judeus (esta terra era repleta de deuses), esta terra era habitada pelos cananeus, que tinham os seus próprios deuses, os quais lutaram contra as tropas de Josué e acabaram a roubar a famosa Arca da Aliança, sem a qual os judeus nunca teriam vencido. A Inglaterra, em 1917, ainda não governava a Palestina (esta terra de leite e mel) pois o tratado que lhe dava este mandato ainda não tinha sido assinado”. – “Begin alega que ele veio ao país…” – “Este é o nome do filme: The Long Absence [A Longa Ausência]. Vê este polaco como o herdeiro de Salomão?”

Nos campos, após vinte anos de exílio, os refugiados sonhavam com a sua Palestina, e ninguém teve a coragem de pensar ou dizer que Israel a destruiu de uma ponta a outra, que onde havia um campo de cevada surgiu um banco, e uma estação de energia onde estava uma vinha a crescer. – “Devemos trocar o portão pelo campo?” – “Nós temos que reconstruir a parede próxima à figueira”. – “Todas as panelas estão enferrujadas: compre uma esponja”. – “Talvez pudéssemos levar electricidade até o celeiro”. – “Não, não mais vestidos artesanais: podemos ter uma máquina de costura e uma para bordados”. Os velhos nos campos são miseráveis; talvez também o fossem na Palestina mas lá a nostalgia desempenhava um papel mágico. Eles podem continuar prisioneiros da maldição infeliz dos campos. Não se tem certeza de que este grupo de palestinianos se lamentará por deixar os campos. Neste sentido, a pobreza extrema faz com que sintam saudades do passado. O homem que sabe disto, junto com a amargura conheceu uma alegria extrema, solitária e impossível de ser expressada. Os campos jordanos que se amontoam nas encostas rochosas são desertos, mas ao redor deles existe um deserto ainda mais desolador: cabanas, tendas com buracos nas quais habitam famílias cujo orgulho brilha. Qualquer um que negue que os homens podem encontrar prazer e orgulho em sua própria privação não entende nada do coração humano; eles podem orgulhar-se pois sua aparente privação contrapõe-se a uma glória escondida.

A solidão dos mortos no campo de Chatila era ainda mais palpável pelo facto de eles terem gestos e poses que eles não tinham planeado. Mortos de qualquer maneira. Mortos deixados ao abandono. Ainda assim ao nosso redor, no campo, todo o carinho, a ternura e amor flutuavam na procura de palestinianos que jamais irão responder. – “O que podemos dizer às suas famílias que foram embora com Arafat, acreditando nas promessas de Reagan, Mitterrand e Perini, que lhes asseguraram que a população civil dos campos estariam a salvo? Como nós podemos explicar que nós permitimos que crianças, velhos e mulheres fossem massacrados, e que nós abandonamos os seus corpos sem orações? Como podemos dizer-lhes que nós não sabemos onde eles foram enterrados?”

Os massacres não foram realizados em silêncio e na escuridão. Iluminados pelos fogos israelitas, os israelitas estavam a ouvir Chatila já na quinta-feira à noite. Que festa, que festival se realizou lá onde os mortos pareciam participar das brincadeiras de soldados embriagados de vinho, de ódio, e provavelmente embriagados no prazer de entreterem o exército israelita que estava a ouvir, a assistir, a encorajar, instigando-os a continuarem. Eu não vi este exército israelita a ouvir e a assistir. Eu vi o que eles fizeram. Para o argumento: O que Israel ganhou por assassinar Bashir: entrando em Beirute, reestabelecendo a ordem e prevenindo um banho de sangue. O que Israel ganhou com o massacre em Chatila? Resposta: o que Israel ganhou entrando no Líbano? O que Israel ganhou bombardeando a população civil por dois meses; caçando e eliminando palestinianos? O que Israel ganhou em Chatila: a destruição dos palestinianos. Israel mata homens, mata cadáveres. Israel arrasa Chatila. Israel não está indiferente à especulação imobiliária da terra reorganizada: esta terra vale cinco milhões de francos por metro quadrado mesmo em ruínas. Mas “limpa” ela terá valor… ? Eu estou a escrever este texto em Beirute onde, talvez pelo facto da morte estar bem perto, ainda estendida no chão, tudo é mais verdadeiro do que na França: tudo parece ter acontecido como se, esgotado e cansado de ser um exemplo, de ser intocável, de tirar vantagem do que ele acredita ter-se tornado – o santo vingativo da inquisição – Israel decidiu permitir ser julgado friamente.

O povo judeu, longe de ser o mais miserável na terra – os indígenas dos Andes mergulham mais fundo em miséria e desprezo – finge ser uma vítima do genocídio, enquanto na América, judeus ricos e pobres mantêm reservas de esperma para a procriação e continuidade do povo “escolhido”. Graças a uma habilidosa porém previsível metamorfose, temos agora o que há muito tempo tem sido preparado: um abominável, poder temporário, colonialista de uma forma que poucos ousaram imitar, tendo-se tornando o juiz definitivo o que se deve à sua antiga maldição tanto quanto ao facto de ter sido escolhido. Este poder abominável, mais uma vez na sua história, está tão pressionando que merece uma condenação unânime; alguém pode mesmo perguntar se Israel não quer recuperar seu destino de povo nómada, humilhado, com poderes secretos. Desta vez, isto é exposto com a terrível luz de massacres que eles não mais sofrerão, mas que é infligido a outros; e quer recuperar sua imagem ancestral e tornar-se novamente o “sal da terra” – arrogando-se que já o tinha sido. Mas então, em resumo! A União Soviética e os estados árabes, covardes como foram ao se recusar a interferir nesta guerra, permitiram que Israel finalmente se mostrasse ao mundo sob uma luz tão forte quanto insana entre as nações.

Muitas questões permanecem: se os israelitas apenas iluminaram o campo, escutaram, ouviram os tiros disparados por tantas armas, cujas cápsulas eu chutei com meus pés (dezenas de milhares), quem realmente estava atirando? Quem estava a arriscar a sua própria pele para matar? Os falangistas? Os Haddadistas? Quem? E quantos?

O que aconteceu com o armamento responsável por todos aqueles cadáveres? E sobre o armamento daqueles que se defendiam a si mesmos? Na parte do campo que eu visitei, eu vi apenas dois armamentos antitanque não utilizados. Como os assassinos entraram no campo? Os israelitas estavam em todas as saídas de Chatila? De qualquer forma, na quinta-feira eles já estavam no Hospital Akka, em frente a uma das entradas do campo. De acordo com os jornais, os israelitas entraram no campo de Chatila assim que ficaram a saber do massacre e pararam com o massacre imediatamente, isto é, no sábado. Mas o que eles fizeram com os assassinos e para onde eles foram levados?

Após o assassinato de Bashir Gemayel e vinte de seus amigos, após os massacres, a Sra. B., membro da classe alta de Beirute, veio-me ver quando descobriu que eu estava de regresso de Chatila. Ela subiu os oito andares do edifício – sem electricidade; eu creio que ela seja idosa, elegante porém idosa.

– “Antes da morte de Bashir, antes dos massacres, estava certo ao me dizer que o pior ainda estava por acontecer. Eu vi isto”.

– “Por favor, não me diga o que você viu em Chatila. Eu estou muito impressionada, e eu tenho que manter minha força para encarar que o pior ainda está por vir.” Ela vive sozinha com seu marido (de setenta anos de idade) e sua empregada num apartamento grande em Ras Beirut. Ela é muito elegante. Muito refinada. A mobília de sua casa é antiga, Luis XVI, acho eu.

– “Nós sabíamos que Bashir tinha ido para Israel. Ele estava errado. Um chefe de estado eleito não deveria associar-se com pessoas como aquelas. Eu estava certa de que alguma coisa terrível iria acontecer com ele. Mas eu não quero ouvir sobre isto. Eu tenho que preservar minha força para resistir aos terríveis golpes que ainda virão. Bashir ia devolver a carta onde o Sr. Begin o chama de caro amigo”.

A classe alta, com seus serviçais silenciosos, tem sua própria maneira de resistência. A Sra. B. e seu marido “não acreditam em reencarnação da alma”. O que acontecerá se eles reencarnarem como israelitas? O dia do enterro de Bashir é também o dia em que o exército israelita entrou em Beirute Ocidental. As explosões chegaram bem perto do edifício onde estávamos; finalmente todos foram até os abrigos subterrâneos. Embaixadores, doutores, suas esposas e filhas, um representante da ONU no Líbano e os seus empregados. – “Carlos, traga-me um travesseiro”. – “Carlos, os meus óculos”. – “Carlos, um pouco de água”. Os empregados, também, são aceites no abrigo assim como também falam francês, isto pode ser necessário para o cuidado dos patrões, das suas feridas, do seu transporte para o hospital ou para o cemitério, que situação difícil!

Vocês têm que saber que os campos palestinianos de Chatila e Sabra eram formados por quilómetros e quilómetros de pequenas ruelas estreitas – por aqui, até os becos são tão esqueléticos, tão finos que algumas vezes duas pessoas não conseguem caminhar juntas a menos que uma ande um pouco atrás – repletos de lixo, blocos de cimento, tijolos, farrapos sujos multicoloridos, e naquela noite, sob a luz do fogo israelita que iluminou o campo, mesmo quinze ou vinte combatentes bem armados seriam incapazes de realizar esta matança. Os matadores trabalharam e eles eram numerosos, e provavelmente acompanhados por equipes de tortura que rachavam os crânios, partiam as coxas, decepavam braços, as mãos e os dedos, e arrastavam os moribundos amarrados em cordas, homens e mulheres que ainda estava vivos pois o sangue jorrou de seus corpos por bastante tempo, tantos que eu era incapaz de determinar quem, no átrio de uma casa, havia deixado uma corrente de sangue seco, saindo do canto do átrio onde havia uma poça tão funda quanto o degrau onde ela desaparecia na poeira. Era um homem palestiniano? Uma mulher? Um falangista cujo corpo havia sido removido? Em Paris, alguém pode alimentar dúvidas sobre esta história toda, especialmente se não conhecer nada sobre a topografia dos campos. Alguém pode permitir que Israel alegue que  os jornalistas de Jerusalém foram os primeiros a reportar o massacre. Como eles expressaram isto para os países árabes e em língua árabe? E em inglês e francês? E quando exactamente?

Reflicta sobre as precauções acerca de uma morte suspeita no Ocidente, impressões digitais, relatórios de balística, autópsias, testemunhas e contra testemunhas! Em Beirute, assim que o massacre foi divulgado o exército libanês oficialmente tomou conta dos campos e eliminou imediatamente as ruínas das casas e o que restou dos corpos. Quem ordenou esta pressa? Especialmente depois que este relato correu o mundo, que cristãos e muçulmanos se estão a matar uns aos outros, e mesmo depois de as câmaras terem gravado a brutalidade da matança. No Hospital Akka, ocupado pelos israelitas, e ao lado de uma das entradas de Chatila, que não está nem a duzentos metros do campo, mas a quarenta. Eles não viram nada, não ouviram nada, não entenderam nada? Porque isto é apenas o que Begin declarou ao Knesset: – “Gentis matam gentis, e eles virão para enforcar os judeus”.

Mas devo concluir a minha descrição de Chatila, que foi brevemente interrompida. Aqui estão os corpos que eu vi por último, no domingo, por volta das duas horas da tarde, quando a Cruz Vermelha Internacional entrou nos campos. O cheiro da morte não estava nem de uma casa nem numa vítima: meu corpo, meu ser, parecia emanar este cheiro. Numa rua estreita, na sombra de uma parede, eu pensei ter visto um lutador de boxe negro sentado no chão, rindo, surpreso por ter sido derrotado. Ninguém tinha tido a sensibilidade de fechar as suas pálpebras, os seus olhos brancos como porcelana saltaram para fora e estavam a olhar para mim. Ele parecia desapontado, com os seus braços levantados, inclinados contra um canto da parede. Ele era um palestiniano que foi morto há dois ou três dias. Se confundi-o à primeira vista com um lutador de boxe negro porque sua cabeça estava enorme, inchada e preta, como todas as cabeças e todos os corpos, seja sob o sol ou na sombra das casas. Eu caminhei até perto de seus pés. Eu peguei a parte superior de uma dentadura que estava caída na poeira do chão e a coloquei no que restou do parapeito de uma janela. A palma de sua mão estava aberta em direcção ao céu, a sua boca aberta, a braguilha de sua calça aberta sem o cinto: uma colmeia onde as moscas se alimentavam. E dei um passo sobre um cadáver, depois outro. Ali na poeira, no espaço entre os dois corpos, havia pelo menos um objecto vivo, intacto na carnificina, um objecto rosa transparente que ainda poderia ser usado: uma perna artificial, aparentemente de plástico, e calçada com um sapato preto e uma meia cinza. Assim que eu olhei mais de perto, ficou claro que ela foi brutalmente arrancada de uma perna amputada, porque as correias que usualmente prende a perna à coxa estavam arrebentadas. Esta perna artificial pertencia ao segundo corpo, aquele no qual eu percebi que tinha apenas uma perna com um pé calçado com um sapato preto e uma meia cinza.

Na rua perpendicular a esta onde eu deixei os três corpos, havia outro. Ele não estava a bloquear totalmente o caminho, mas estava deitado na entrada da rua de forma que eu tive que caminhar em volta dele e virar para ver a sua aparência: sentado numa cadeira, rodeado por homens e mulheres jovens e silenciosos, uma mulher – num vestido árabe – estava a chorar; ela devia ter dezasseis ou sessenta anos. Ela estava a chorar sobre seu irmão cujo corpo quase bloqueava a passagem. Eu cheguei perto dela. Eu olhei com mais cuidado. Ela tinha um cachecol à volta de seu pescoço. Ela estava a chorar e a lamentar a morte do seu irmão junto dela. O seu rosto estava rosa, um rosa bebé, a mesma cor sobre tudo, bem suave, delicada, mas sem as pestanas ou as sobrancelhas, e o que eu pensei que fossem rosa não era a superfície de sua pele mas uma camada inferior de pele cinza. Todo o seu rosto tinha sido queimado. Eu não sei pelo quê, mas eu entendi por quem.

Com os primeiros corpos eu tentei contá-los. Quando eu cheguei a vinte ou quinze, rodeado pelo cheiro, pelo sol, tropeçando sobre cada ruína, isto era impossível; tudo se tornou confuso. Eu tinha visto vários edifícios a desmoronar e casas destruídas com cobertores para fora que não tinham sido removidos, mas quando eu olhei para aquelas em Beirute Ocidental e Chatila eu vi pavor. Geralmente os mortos tornam-se bastante familiares, até mesmo amigáveis para mim, mas quando eu vi aqueles corpos nos campos e percebi apenas o ódio e o prazer daqueles que os tinham matado. Uma festa bárbara foi realizada lá: raiva, bebedeira, danças, canções, maldições, lamentos, gemidos, em honra dos voyeurs que estava a rir no terraço do Hospital Akka.

Na França, antes da Guerra na Argélia, os árabes não eram bonitos, o seu andar era desajeitado, arrastado, eles tinham caras feias, e assim de repente a vitória tornou-os belos; mas um pouco antes que a vitória estivesse garantida, enquanto mais de meio milhão de soldados franceses estavam-se a esforçar e a morrer nos Aures e por toda a Argélia, uma coisa curiosa aconteceu com os rostos e corpos dos trabalhadores árabes: algo como a aproximação, o pressentimento de uma beleza ainda frágil que iria nos cegar quando as escamas finalmente caíram da sua pele e dos nossos olhos. Nós tínhamos que admitir: eles tinham alcançado a liberdade política a fim de serem vistos como eles eram: muito bonitos. Da mesma maneira, uma vez que eles tinham escapado dos campos de refugiados, da moralidade e das regras dos campos, de uma moralidade imposta pela necessidade de sobreviver, uma vez que eles tinham ao mesmo tempo escapado da vergonha, os fedayin tornaram-se muito bonitos; e como esta beleza era nova, podemos mesmo dizer primitiva, ingénua, ela era saudável, tão viva que revelou de uma vez o que a conectava com todas as belezas do mundo, libertando-os da vergonha. Muitos argelinos que caminhavam pela Pigalle à noite usavam o seu charme ao serviço da revolução na Argélia. A virtude também esta lá. É Hannah Arendt, acredito eu, que diferenciou as revoluções de acordo com o facto delas buscarem a liberdade ou a virtude – e portanto, o trabalho. Talvez devêssemos também reconhecer que revoluções ou os objectivos da libertação – obscuramente – ao descobrir ou redescobrir a beleza, que é o intangível, inominável, excepto por esta palavra. Mas não, por outro lado: vamos traduzir a beleza como um riso insolente estimulado por um passado infeliz, sistemas e homens responsáveis por tristeza e vergonha, e acima de tudo um riso insolente que nos torna conscientes de que, livre da vergonha, o desenvolvimento é fácil. Mas nesta página nós devemos também abordar a seguinte questão: a revolução é uma revolução quando ela não remove dos rostos e dos corpos a pele morta que os tornava feios? Eu não estou falando da beleza académica, mas sobre a intangível – inominável – alegria de corpos, rostos, gritos, palavras que não mais estão tristes, eu refiro-me à alegria sensual tão forte que persegue todo erotismo.

* * *

Aqui estou eu novamente em Ajloun, na Jordânia, e de seguida irei a Irbid. Remover o que eu acredito ser como tirar um fio de cabelo branco e colocá-lo sobre as pernas de Hamza, sentado próximo a mim. Ele retira o fio com o polegar e o dedo indicador, olha para ele, sorri, o coloca dentro do bolso de sua jaqueta preta, na qual bate com a mão e diz: – “Um cabelo da barba do profeta vale menos do que este”. Ele respira profundamente e recomeça: – “Um cabelo da barba do profeta não vale mais do que este”. Ele tinha apenas vinte e dois anos de idade, mas os seus pensamentos superavam facilmente o dos palestinianos de quarenta, mas ele já carregava os sinais – em si mesmo, no seu corpo, nas suas acções – que estavam ligados aos mais velhos.

Nos tempos antigos os fazendeiros costumavam limpar o nariz com seus dedos. Depois eles atiravam os macacos com o polegar para o meio dos espinheiros. Eles limpavam o nariz nas suas luvas de veludo, que ao final de um mês estava coberta com um verniz pérola. Assim também faziam os fedayin. Eles limpavam o nariz da mesma maneira que os nobres e clérigos cheiravam rapé: levemente encurvados para a frente. Eu fiz a mesma coisa, assim eles ensinaram-me sem se dar conta.

E as mulheres? Noite e dia elas bordavam as sete vestes (um para cada dia da semana) do enxoval de noivado oferecido por um marido geralmente mais velho escolhido pela família, um despertar doloroso. As jovens palestinianas  ficam lindas quando se revoltam contra seus pais e quebram as agulhas e as tesouras de bordar. Isto acontecia nas montanhas de Ajloun, Salt e Irbid, nas mesmas florestas em que a sensualidade havia descido, libertada pela revolução e pelas armas, não nos esqueçamos das armas. Isto era suficiente, todos estavam felizes. Sem se darem conta, os fedayin – seria verdade? – estavam aperfeiçoando numa nova beleza: a vivacidade de suas acções e a sua clara fadiga, a rapidez e o brilho de seus olhos, o som claro de uma voz harmonizada com a agilidade e brevidade da resposta. Com a sua precisão também. Eles acabaram com as frases longas, a retórica aprendida e improvisada.

Muitos morreram em Chatila, e minha amizade, o meu afecto pelos seus corpos apodrecidos também era imenso, porque eu os tinha conhecido. Inchaço negro, apodrecido pelo sol e pela morte, eles ainda assim eram fedayin.

Por volta das duas horas da tarde, no domingo, três soldados do exército libanês levaram-me sob a mira de armas, até um carro onde estava um oficial. Eu perguntei-lhe: – “Você fala francês?” – “Inglês”. A voz era seca, talvez pelo facto de eu o ter acordado para começar. Ele olhou para o meu passaporte, e disse-me em francês:

– “Você só esteve lá?” Ele apontou para Chatila.

– “Sim”.

– “E você viu?”

– “Sim”.

– “Você vai escrever sobre isto?”

– “Sim”.

Ele me devolveu o passaporte. Ele deu um sinal para me deixarem ir. As três espingardas baixaram-se.

Eu tinha passado quatro horas em Chatila. Cerca de quarenta corpos permaneciam na minha memória. Todos eles – e eu quero dizer todos – tinham sido torturados, provavelmente com um pano de fundo de embriaguez, música, riso, o cheiro da pólvora e da carne a apodrecer. Provavelmente eu estava sozinho, eu quero dizer o único europeu (com algumas poucas velhas palestinianas que ainda se apressavam a rasgar panos brancos; com alguns fedayin jovens desarmados), mas se estes cinco ou seis seres humanos não estivessem lá e eu tivesses descoberto esta cidade massacrada, com palestinianos negros e inchados estendidos por lá, eu teria ficado louco. Teria?

Esta cidade feita em pedaços que eu vi ou pensei ter visto, pela qual eu caminhei, cai, e cujo cheiro de morte eu vesti, tudo isto teria acontecido? Eu teria explorado, muito pouco, apenas um vigésimo de Chatila e Sabra, nada de Bir Hassan, nada de Bourj al-Barajneh. E não era por causa das minhas inclinações pelo período que passei da minha vida na Jordânia como se fosse um conto de fadas. Europeus e árabes norte-africanos disseram-me sobre um feitiço que os mantinha lá. Como eu vivi durante este espaço longo de seis meses, pobremente colorido por noites de doze ou treze horas, eu descobri o aspecto etéreo do que estava a acontecer, a qualidade excepcional dos fedayin, mas eu tinha a premonição da fragilidade desta estrutura. Por todos os lugares na Jordânia onde o exército palestiniano se amontoava, próximo ao Rio Jordão, existiam barreiras onde os fedayin estavam tão certos de seus direitos e do seu poder que a chegada de um visitante, fosse noite ou fosse dia, em qualquer uma das barreiras, era um pretexto para um chá, para uma conversa misturada com explosões de riso e de beijos fraternos (alguém que eles abraçavam estaria de partida à noite, atravessando o Rio Jordão para instalar bombas na Palestina e frequentemente não voltavam). As únicas ilhas de silêncio eram as vilas jordanas; elas mantinham as suas bocas fechadas. Todos os fedayin pareciam caminhar levemente sobre o solo, com o efeito leve de um copo de vinho ou levados por um pouco de haxixe. O que era isto? Juventude, esquecimento da morte e com armas checas e chinesas para dar tiros para o ar. Protegidos por armas que falavam alto, os fedayin não tinham medo de nada.

Qualquer leitor que tenha visto um mapa da Palestina e da Jordânia sabe que a terra não é como uma folha de papel. Ao longo do Rio Jordão a terra é em alto relevo. Esta aventura toda deveria ter sido intitulada de “Sonho de uma noite de verão” apesar das discussões entre líderes de quarenta anos de idade. Tudo isto era possível por causa da juventude, o prazer de estar sob as árvores, de brincar com as armas, de estar distante das mulheres, em outras palavras, de conjurar um problema para longe, de ser o mais brilhante e o mais avançado ponto da revolução, de ter a aprovação da população dos campos, ou ser fotogénico sem se importar para que, e talvez por prever que este conto de fadas revolucionário pode ser contaminado em breve: os fedayin não querem poder; eles possuem liberdade.

No aeroporto de Damasco, na minha viagem de regresso a Beirute, encontrei alguns jovens fedayin que tinham escapado ao inferno israelita. Eles tinham dezesseis ou dezessete anos. E estavam a rir; eles eram como os de Ajloun. Eles irão morrer tal como aqueles. A luta por um país pode preencher uma vida muito rica, porém curta. Esta foi a escolha, como podemos recordar, de Aquiles na Ilíada.

* Nota introdutória, pesquisa e adaptação de Carlos Vidal, Leonor Guerra, Menor e Renato Teixeira

3 opiniões sobre ““Quatre Heures à Chatila”, por Jean Genet

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